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O texto abaixo foi escrito em 2023, após um evento com shows das bandas Ventilador de Teto (VDT), da qual faço parte junto com Jandaia, de Florianópolis e com o rapper Natö, de Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Ele foi publicado originalmente na Newsletter da VDT. O evento rolou na intercessão entre Maracanã e Mangueira, Zona Norte da capital fluminense, num estúdio na rua São Francisco Xavier que já não existe mais. Organizei o evento para Jandaia, que estava em turnê na época. Muita gente entrou sem pagar — por descuido nosso, os responsáveis pela portaria. Assim como em todos os eventos que fizemos com a Jandaia no Rio, os caras saíram no prejú.


Reproduzo o texto aqui, misto de crônica da noite e entrevista com Natö, porque acredito que ele enfoca questões com as quais todo artista independente — especialmente quem sobrevive inteiramente a partir do financiamento CUSP¹ — já se deparou. Natö é um desses caras — rapper, professor e cabeça do projeto social Aulada, no qual ministra aulas online sobre diferentes tópicos de interesse, pra quem quiser colar.

¹O glorioso fundo Cada Um Com Suas Picas.

Por que persistir artisticamente quando os frutos são poucos, os entraves são muitos e o tempo mais curto que perna de pirata? Quais são os prós e contras de cantar e mover os braços na frente de outros seres humanos? Este texto expõe perguntas como essas, e não se preocupa em responder nenhuma.

É dia 9 de junho e estamos chegando no local do show. É quase 20h. O combinado era que chegássemos às 19h, mas alguém da banda atrasou, não lembro quem, talvez tenhamos sido todos nós. Chegando lá, alguns espectadores já estão espalhados pelo local. Trata-se de um pequeno estúdio em frente à estação de trem da São Francisco Xavier, num prédio que é, a um só tempo, comercial e residencial. O dono do estúdio é o Bena, sujeito gente fina, mas inteiramente relapso, cujo modelo de negócio parece ter sido orientado pelo João Frango de “Tá Dando Onda”.



Isso significa dizer que não havia ninguém cuidando da entrada — e como nós chegamos atrasados, tampouco nos preocupamos em cobrar ingressos. Tenho absoluta certeza de que algumas pessoas entraram sem pagar. Naturalmente, não mencionei nada disso para o Natö, que já estava lá com a sua patota, nem pra Jandaia, que, descobriríamos mais tarde, estava levando uma dura numa blitz naquele exato momento. Como o evento tinha sido meio que ideia minha, não quis dar bandeira e revelar o péssimo produtor cultural que sou. Ainda mais depois que descobri que os meninos da Jandaia morreram numa grana boa pra se livrar dos homens da lei...


O primeiro show da noite foi de Natö, e o som não estava dos melhores. Algum tipo de mau contato nos cabos prejudicou a reprodução dos beats no notebook, comandado pela também backing vocal Clá Gouveia (que gravou o single “Vamo Ali Pro Cantinho” com a VDT). Natö, mais próximo do público do hip-hop, foi jogado por mim diretamente na fogueira de um show indie. Se já estava difícil conseguir que o público fizesse barulho ou batesse palma, com o som dando ruim ficou ainda pior.



Assistimos ao show da Jandaia e depois convidei o Natö pra uma rápida entrevista no estacionamento. Acontece que eu gosto do cara e de sua música, fiquei especialmente impressionado pelo modo como ele não se intimidou nem pela plateia, nem pelas deficiências técnicas do recinto. Eu provavelmente teria me fingido de morto no chão se estivesse em seu lugar.


Com o celular em riste e o app de gravação aberto, fiz todas as perguntas que se esperam de um semi-agorafóbico:

Marcos: Isso aqui vai pra Newsletter da VDT, que são cinquenta pessoas. Se eu conseguir que duas pessoas escutem você, minha missão tá cumprida. Pra essas cinquenta pessoas, ou pra essas duas em específico, fala quem você é.


Natö: Eu me chamo Renato, eu sou de Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Sou cantor, professor de história, educador popular. Trabalho nessa dupla jornada maluca entre ser artista independente e educador. E faço uma música que as pessoas costumam rotular entre a MPB e o hip- hop alternativo. Não necessariamente um rapper, mas tem muito rap. Não necessariamente um cantor que pega o violão e toca ali no acústico, meio Caetano Veloso, porém com muita dessa bagagem da música brasileira.


Eu tenho dois EPs lançados que eram pra ser um disco, mas, por conta de grana, foram separados [trata-se de Nômade, pt.1 e Nômade, pt 2]. A previsão é que dentro dos próximos dez anos eu lance a terceira parte... Desde 2020 o meu trabalho tá na rua. São 1 ano e 4 meses fazendo show, e hoje estar tocando aqui é mó privilégio, com Jandaia, Ventilador de Teto…


M: Não, não, para com essa parte…


N: É verdade, é verdade. Admiro o trabalho de vocês. Inclusive tô feliz que amanhã vai ter outro show com a Jandaia, que a gente vai fazer junto, com a Artelas, lá em Caxias. Fiquei mais animado agora porque o show dos caras [da Jandaia] é maneiro. Tinha visto com o Felipe Vaz, já, que é meu irmãozão. E amanhã é jogar em casa. Tem essa parada de jogar em casa.


M: Mas quando o som para, como você faz o show? Porque você teve que se virar hoje.



N: Tem vezes que a gente tira de letra, tem vezes que a gente fica nervoso, tem vezes que a gente pensa assim: “quanto mais parado eu ficar, mais vai dar certo.”


M: Você ficou nervoso hoje?


N: Um pouco. Fiquei. Hoje não foi minha melhor performance, não, embora eu tenha me divertido muito. E acho que o show funcionou de boa, mas a situação de, às vezes o microfone dar uma falhada... eu fiquei assim... “é por que eu tô me mexendo?”. Tipo, quanto mais eu tentava achar ali ao longo do show a posição mais confortável, mais eu também tava preocupado não só com o show. Mas acontece.


M: Ser professor te ajuda nessas horas?


N: Ajuda, ajuda. Ajuda porque o professor, meu amigo, ele tá acostumado a lidar com o caos. Todo o tipo de besteira que a gente ouve em sala de aula a gente tem que, né… Às vezes dá vontade de rir, mas não pode rir porque a gente tá ali em posição de referência. A gente segura a onda. E aí, cinco

anos dando aula, tem uma bagagem maneira pra poder, quando ‘tiver no palco, dar uma segurada de onda. Qualquer deslize, pum, a gente mata no peito e tenta resolver ali de boa.


M: Mas tu não fica nervoso quando é ali a hora de chamar a plateia…? Ainda mais se for uma plateia tímida como a de hoje — que é fã da VDT, mas fã da VDT é tudo esquisito. Como é que fica… Eu fico nervoso quando é hora de chamar, “ah, nas palmas, não sei o quê”. Eu nem consigo olhar pra plateia.


N: Sinceramente, eu não fico, não. Essa parte é fácil pra mim. Chamo numa boa porque eu penso assim, “já tô aqui, mano, fodeu”. Já tô me expondo da forma mais… Eu chamo mermo, né, foda-se. Às vezes ninguém vem…


M: Mas nisso tu pode aprofundar o buraco que tu tá se metendo…


N: É, então, mas aí eu falo foda-se, sinceramente, assim. Já teve lugar de eu ficar “bora, galera, bora!” e ninguém vir. Foda-se, mano, vou pra casa. Fiz o show bem, tá tudo certo.


M: Nessas horas dá vontade — eu acho que não é uma vontade boa — mas me dá vontade de antagonizar um pouco a plateia.


N: Como assim?


M: De pegar no pé, de ser escroto, mermo. Eu tenho um impulso escroto de ser escroto. Nessas horas, quando eu vejo que tô fazendo ali e não tá funcionando, é quando eu acabo fazendo merda, vou pra cima dos outros, quando caio em cima do equipamento…


N: Eu, sinceramente, se ninguém responder, vou insistir um pouquinho mais, mas chega uma hora que eu falo assim: “ei, parou, Renato.”


M: Eu acho que é um pouco de desespero também.


N: É desespero total.



M: Quando isso for publicado, teu show vai ter rolado. Mas, me fala, por que as pessoas deveriam ir em outro futuro show do Natö.


N: Cara, eu acho que por conta da entrega. Na moral mermo. Marcos, na moral mermo. A gente ama muito isso que a gente faz. A gente faz desde pequeno. A gente sempre teve muita dificuldade, e agora que a gente conseguiu fazer, a gente tá muito a fim. Cada show é um show, cada show a gente pensa algo especial pro show. Normalmente a gente leva uma estrutura de audiovisual, de telão… Bagulho muito imersivo mesmo, então a gente espera que seja não só uma apresentação da banda, mas um bagulho interativo com a plateia. Eu acho que o som no Spotify é um cartão de visita, o show é que tu vai conhecer mermo qual que é a parada.


M: Mas nessa toada ainda, uma pergunta porque eu tenho pensado muito nisso... E a questão do burnout?


N: É, tem, existe. Tem hora que eu tenho que parar. Tem hora que não dá.


M: Porque é um trabalho totalmente irracional, porque você… o trabalho em si é escrever a música e performar, só que você não faz só isso, você organiza o show, você é social media, você bola o clipe, ajuda a gravar o clipe…


N: E dá aula no meio disso.


M: Sendo assim, por que alguém faria música?


N: É doideira. Minha família apoia, mas fala assim: “Mano, cê vai ficar mal com isso de música.” Mas vou te falar, eu fico pior quando não tô fazendo.




Talvez eu tenha desaprendido a conversar. Assim como acredito ter esquecido como se anda de bicicleta. Mas, no fundo, sei que, se tentar, em pouco tempo estarei me equilibrando novamente — reencontrando o ritmo, me adaptando às pedaladas com a força dos meus próprios pés.


O corpo aprende, o corpo lembra. Talvez a fala também.

Talvez a terapia nunca seja demais. Não consigo enxergar um ponto final nela. Algumas dores se repetem como ciclos disfarçados, e a gente só se dá conta quando se vê de novo naquele mesmo lugarzinho do déjà-vu — familiar, incômodo, insistente. Um canto do peito onde parece que o tempo parou, e certas feridas voltam a coçar.


"Melancolia" - Edvard Munch
"Melancolia" - Edvard Munch

Aceito as condições para viver em paz. Eu sou assim — inteiro nas minhas tentativas, limitado nos meus silêncios. Mas não me peça para esquecer as chagas. Estão expostas na minha pele, como cicatrizes que não se escondem nem com o sol. E se você olhar de perto, verá mais do que marcas: verá a história que a dor escreveu em mim, os caminhos por onde precisei passar, os pesos que precisei carregar.


Falamos o tempo todo sobre tantas coisas, mas certas conversas ficam para trás. Não por falta de importância, mas por falta de espaço. Ficam ali, guardadas no fundo do peito, trancadas por medos antigos, por desconfianças ainda vivas, por julgamentos silenciosos que nos convencem de que “não vale o esforço”.

"A Mulher Azul" - Picasso
"A Mulher Azul" - Picasso

Porque dizer certas coisas exige coragem: atravessar o medo do confronto, desafiar o silêncio herdado, encarar a possibilidade de não ser compreendido.


Tem conversa que machuca mais do que o silêncio.

Falar, para mim, nem sempre é simples. Há verdades que pesam. Há palavras que deveriam ser desnecessárias, porque o óbvio também deveria ser cuidado. Mas não é. Esperam que eu nomeie as frustrações, que eu descreva as dores, que eu entregue em bandeja o que já me custa tanto só existir.


E aí, muitas vezes, opto pelo silêncio: carrego o fardo do “tudo bem”, o conformismo do “pode ser”, ou o peso quase insuportável do “deixa pra lá”.
"A Morte de Casagemas" - Picasso
"A Morte de Casagemas" - Picasso

É muita carga para uma vida que já caminha na beira do abismo — na corda bamba da incerteza, no medo da falta, no cansaço de correr atrás do que, desde cedo, disseram que não era pra mim.

Tantas vezes fui silenciado. Tantas vezes não fui ouvido, não fui citado, não fui lembrado.


Aprendi a lidar com a ausência de palavras e com a falta de significado.

E fico me perguntando: quem nos ensinou a falar? Houve, algum dia, uma escola para conversas honestas?


Na minha infância, os lares eram barulhentos, mas pouco comunicativos. Amores frágeis sustentados na ausência de cuidado. Meus pais quase não conversavam. Muito se gritava. Muito se mandava. Tudo era reativo, automático, urgente. Posicionamentos rasos em piscinas sem profundidade.


Aprendemos a sobreviver, mas não a dialogar.
"A Tragédia" - Picasso
"A Tragédia" - Picasso

A fala é construída. A conversa, rara. Porque não é ensinada. Não é incentivada. O tempo corre, a sobrevivência grita, e a vida exige funcionalidade. Fala-se o necessário para manter a máquina em funcionamento. Mas ninguém para para ouvir os estalos da engrenagem, o ranger dos parafusos, a ausência de óleo. Ninguém liga se a máquina está aos poucos se desfazendo — se está funcionando, já basta. E o mundo gira.


Nos meus relacionamentos, vez ou outra a falta de comunicação virava pauta. Era cobrada, apontada, jogada na mesa como algo que estava sempre por um triz. E, mesmo quando eu me propunha a falar — mesmo quando já havia dito tanto — ainda assim parecia faltar algo.


Talvez porque falar não seja só dizer; é também escutar, interpretar, sustentar o que foi dito depois que a palavra escapa.
"A Menina Doente" - Edvard Munch
"A Menina Doente" - Edvard Munch

Não dá para compartilhar uma vida sem diálogo. Não dá para contar com o acaso todos os dias. Silêncios se acumulam, e em algum momento se transformam em ruído. E eu, nesses momentos de cobrança, aceitei o fardo. Me coloquei à disposição da conversa. Busquei o desconforto. Pedi espaço para nomear o que doía, para construir pontes onde antes havia só mal-entendidos.


Mas não é simples. Não é instintivo. Faltavam repertórios, faltavam modelos. Faltava até um vocabulário emocional mais preciso. A gente cresce em ambientes onde não se conversa — se ordena, se desvia, se cala, se explode. E então, amar alguém exige uma habilidade que ninguém nos ensinou.


Tive que aprender na marra.
"O Grito" - Edward Munch
"O Grito" - Edward Munch

Aprender a falar sem machucar, a ouvir sem me perder. Aprender a reconhecer a tensão no ar, os fios soltos que ninguém amarra, mas que todos sentem. Fios elétricos: qualquer movimento brusco pode provocar um choque. Então, fui pisando leve, tentando fazer do diálogo um caminho, não uma armadilha.


Mas há um paradoxo que ninguém conta: o diálogo em excesso também cansa. Quando tudo precisa ser dito, esmiuçado, revisitado, pode virar peso. A busca pela compreensão absoluta pode se transformar num abismo — onde nada nunca está bom o suficiente, claro o bastante, completo de verdade. E, ironicamente, o esforço de comunicar vira o motivo do desgaste.


Falar demais, às vezes, também afasta.
"Retrato do Dr. Gachet" - Vincent van Gogh
"Retrato do Dr. Gachet" - Vincent van Gogh

Foi assim que entendi que conversar é uma arte frágil. Fina como porcelana. Falar é importante, mas exige ritmo, exige cuidado, exige timing. Às vezes, também exige silêncio. E o difícil é encontrar o equilíbrio entre o que precisa ser dito… e o que pode, simplesmente, ser sentido.

No corre diário, entre a escassez de tempo e a abundância de cobranças, o silêncio vira um privilégio.


São tantas horas gastas com os outros — e quanto tempo sobra só pra mim? Quase nenhum.
"Melancolia" - Paul Gauguin
"Melancolia" - Paul Gauguin

Não tenho sequer tempo pros meus. Pros meus irmãos, pras minhas irmãs, pra ouvir quem eu amo, pra transformar o não-dito em palavra viva. E me dói. Sinto muito pela ausência de diálogo. Mas a verdade é que preciso me dedicar tanto a sobreviver que, para alguns, tudo o que conseguirei oferecer será o silêncio — não por descaso, mas por pura exaustão.


Talvez um dia eu volte a pedalar entre as palavras — com menos medo, com mais fôlego, com o coração mais leve.

  • Foto do escritor: Pivete
    Pivete
  • 1 de abr.
  • 5 min de leitura


E olha eu aqui de novo, falando de mim, da minha trajetória. Esses últimos dias foram especiais, mesmo com os atravessamentos diários. Alguns de vocês ainda não sabem, mas atualmente moro em outro estado. Não estou mais nas ruas da Baixada Fluminense, ruas que me moldaram e me transformaram em quem sou. E não, não é brincadeira. Não se trata de levantar uma bandeira ou justificar meu lugar, como se precisasse provar que não tive tudo de mão beijada.


Tive que correr atrás, conquistar.

Eu sou de Belford Roxo, Baixada Fluminense, e falo mesmo. Porque é o que sou. Por isso, volta e meia, estou nos stories, com meus “textões”, refletindo, questionando, tensionando uma margem que, se deixar, se normaliza e nos coloca um uniforme, como se fôssemos todos iguais. Mas não somos. Onde eu nasci, muitos de vocês têm medo de pisar.



Muitos de vocês não conseguiriam aguentar, sequer subir o morro, porque a última casa lá em cima é a morada de alguém.

Essas últimas semanas foram de afetos. Como posso falar dela aqui? Acho que posso dizer que esse afeto foi uma das inspirações para este texto. Ela tem esse dom: de ouvir, de falar, de me aquecer, de me entreter, de fazer o tempo passar, de tirar meu imediatismo. De tanta coisa. Mas isso fica para outros textos.


Essas últimas semanas também foram de eleição do Comitê de Vitória – ao qual ganhei. Durante a campanha, contei um pouco da minha história em vídeo, o que me fez lembrar todas as minhas movimentações em São João de Meriti, naquele celeiro político que é o Ciep 175.


Ali, vi tantas potências políticas, aprendi que eu também poderia ser um agente de transformação. Naquele Brizolão, absorvi tanto que carrego comigo até hoje. Outro dia, uma professora relembrou meu primeiro dia na escola que trabalho atualmente, quando contei como os projetos culturais do contraturno se tornaram espaços seguros para mim.



Era um refúgio da violência do meu bairro, da ausência dos meus pais e amigos, do medo da solidão.

Chegou um momento em que eu vivia mais na escola do que em casa. Participava de tudo: cinema, teatro, rádio-escola, grêmio estudantil, monitoria. Ajudava a organizar palestras e eventos, ia até nos finais de semana.


Quando voltei como universitário para falar em uma dessas palestras que anos antes ajudei a organizar, percebi a potência desses territórios na nossa formação. Isso me deu forças para, junto com amigos, anos depois, retornar de outra forma: organizando um pré-vestibular social que colocou centenas de alunos de escolas públicas na universidade.



Hoje, isso é uma rede presente em diversas instituições estudantis e sociais da Baixada Fluminense.

E quando colocamos milhares de pessoas nas ruas de Vilar dos Teles, em São João de Meriti, contra a corrupção que assola a Baixada Fluminense, o comandante da PM veio falar conosco. Tentou intimidar, mas levantamos a cabeça e dissemos: “Nada vai nos parar”. Paramos a cidade, reivindicamos mais saúde e educação em frente à prefeitura. Fomos atacados, oprimidos, dispersados, mas nunca esqueceremos o dia em que gritamos “Basta!”.


Aquele dia foi mágico. Mostrou o poder da mobilização, dos nossos ideais. Mostrou que somos capazes de qualquer coisa quando estamos em rede.


E continuei. Entrei na faculdade, na sexta lista de chamada, sem dinheiro nem para fazer a matrícula. Quase perdi a vaga. Minha avó arrumou R$ 50, fui com ela e consegui no último minuto. Foi a melhor coisa que aconteceu. A UFF foi mais que uma universidade para mim.


Como um afeto me disse certa vez: “Iago, para você, a UFF foi uma mãe.”

E foi, de certa forma. Mas eu me propus a ser um bom filho. Até porque eu precisava daquele espaço. Ou era ali, ou era Belford Roxo, com sua violência e descaso. Sempre busquei reivindicar meu território, mas não pude exercer muita coisa por lá. O risco era imediato. Talvez nem houvesse um aviso antes de acontecer.


Mas antes de ser parte da universidade, precisei encontrar formas de me manter. A entrada é gratuita, mas a permanência custa caro. Paguei com tempo, com insegurança, com fome, com frustração e com minha força. Demorei três semestres para morar perto da faculdade. Antes, eram quase cinco horas diárias de deslocamento entre Belford Roxo e Niterói.



Para vocês terem uma ideia: se eu saía da faculdade às 18h, chegava em casa, em média, às 22h.

Mas e aí? Vai chorar para quem? Você acha que eu podia desistir? Se duvidar, meu caso nem é dos piores. Tem gente que se sacrificou muito mais por um diploma, por uma vida melhor. Porque o CEP já indicava um destino certo, e tivemos que reverter essa lógica, ser o modelo, em busca de nos tornarmos espelho.


Coloquei na cabeça que todos os meus amigos deveriam estar ali. Nada justificava que não tivessem as mesmas oportunidades que eu. E aqueles que lá estavam não faziam ideia de quantos ficaram para trás nessa peneira. Fui atrás disso também. Comecei a pesquisar Cotas Raciais, Políticas Públicas e Relações Étnico-Raciais.



Entrei em espaços que nunca nem imaginaria, debati, fui chamado para palestrar, ajudei a coordenar as comissões de heteroidentificação em todos os campi interiorizados da universidade. Isso tudo na graduação. Depois fui secretário da Assessoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da Universidade Federal Fluminense.


Participei de comissões de sindicância, fui convidado até mesmo quando já não fazia mais parte da assessoria. Fui visto, lido, elogiado e, nos meus trabalhos, questionei um pouco dessa peneira que quase me impediu de ter essas oportunidades.


Na universidade, descobri o mundo. Descobri que fazia parte dele. Que eu podia mudá-lo, mesmo que no micro. E eu busquei. E acho que consegui. Minhas pequenas ações geraram pequenas mudanças. Algumas, significativas. Aproveitei tudo o que aprendi no Ciep 175 e aprimorei.



Fiz documentários, ganhei prêmios, certificados, viajei o Brasil. Virei Mestre por um dos melhores programas de pós-graduação em Antropologia do país.

Mas tudo isso foi à base de dor, como foi fora também. Houve um momento em que não queria continuar. Me ausentei da academia, fui para São Paulo, entrei no mercado de trabalho, numa agência de marketing industrial. Usei tudo o que aprendi. Agradeço à revista Menó, pois sem ela não teria conseguido o emprego. Mostrei que sou capaz. Fui elogiado. Nas idas e vindas da CPTM, nos vagões lotados, na loucura da Babilônia paulista, provei de novo do que sou feito.



Agora estou no Espírito Santo, em Vitória, num trainee que busca me desenvolver para ser uma liderança na educação. Mas esse desenvolvimento começou ali, em Belford Roxo, em São João de Meriti, naquelas paredes de concreto e aço projetadas por Darcy Ribeiro e executadas por Brizola. Foi lá, naqueles projetos, naquele sopro de esperança, naquele espaço seguro diante da violência que me assustava e assolava.


O MEU TERRITÓRIO ME TROUXE ATÉ AQUI.


Minha força, meus afetos, meus amigos, meus familiares. Foram eles que pavimentaram as estradas, que me ajudaram a desbravar os caminhos. Eles e eu. Porque ninguém faz nada sozinho.


É impossível me render a qualquer discurso que tente ditar quem sou ou para onde vou. Já mostrei, desenhei, expliquei: sou fruto da esperança. Sou menos uma estatística. Represento todos os meus irmãos que não chegaram, que foram impedidos, que ficaram para trás.


EU SOU A PRÓPRIA BAIXADA FLUMINENSE!

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Todos os Direitos Reservados | Revista Menó | ISSN 2764-5649 

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