- Pivete
- 1 de abr.
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E olha eu aqui de novo, falando de mim, da minha trajetória. Esses últimos dias foram especiais, mesmo com os atravessamentos diários. Alguns de vocês ainda não sabem, mas atualmente moro em outro estado. Não estou mais nas ruas da Baixada Fluminense, ruas que me moldaram e me transformaram em quem sou. E não, não é brincadeira. Não se trata de levantar uma bandeira ou justificar meu lugar, como se precisasse provar que não tive tudo de mão beijada.
Tive que correr atrás, conquistar.
Eu sou de Belford Roxo, Baixada Fluminense, e falo mesmo. Porque é o que sou. Por isso, volta e meia, estou nos stories, com meus “textões”, refletindo, questionando, tensionando uma margem que, se deixar, se normaliza e nos coloca um uniforme, como se fôssemos todos iguais. Mas não somos. Onde eu nasci, muitos de vocês têm medo de pisar.

Muitos de vocês não conseguiriam aguentar, sequer subir o morro, porque a última casa lá em cima é a morada de alguém.
Essas últimas semanas foram de afetos. Como posso falar dela aqui? Acho que posso dizer que esse afeto foi uma das inspirações para este texto. Ela tem esse dom: de ouvir, de falar, de me aquecer, de me entreter, de fazer o tempo passar, de tirar meu imediatismo. De tanta coisa. Mas isso fica para outros textos.
Essas últimas semanas também foram de eleição do Comitê de Vitória – ao qual ganhei. Durante a campanha, contei um pouco da minha história em vídeo, o que me fez lembrar todas as minhas movimentações em São João de Meriti, naquele celeiro político que é o Ciep 175.
Ali, vi tantas potências políticas, aprendi que eu também poderia ser um agente de transformação. Naquele Brizolão, absorvi tanto que carrego comigo até hoje. Outro dia, uma professora relembrou meu primeiro dia na escola que trabalho atualmente, quando contei como os projetos culturais do contraturno se tornaram espaços seguros para mim.

Era um refúgio da violência do meu bairro, da ausência dos meus pais e amigos, do medo da solidão.
Chegou um momento em que eu vivia mais na escola do que em casa. Participava de tudo: cinema, teatro, rádio-escola, grêmio estudantil, monitoria. Ajudava a organizar palestras e eventos, ia até nos finais de semana.
Quando voltei como universitário para falar em uma dessas palestras que anos antes ajudei a organizar, percebi a potência desses territórios na nossa formação. Isso me deu forças para, junto com amigos, anos depois, retornar de outra forma: organizando um pré-vestibular social que colocou centenas de alunos de escolas públicas na universidade.

Hoje, isso é uma rede presente em diversas instituições estudantis e sociais da Baixada Fluminense.
E quando colocamos milhares de pessoas nas ruas de Vilar dos Teles, em São João de Meriti, contra a corrupção que assola a Baixada Fluminense, o comandante da PM veio falar conosco. Tentou intimidar, mas levantamos a cabeça e dissemos: “Nada vai nos parar”. Paramos a cidade, reivindicamos mais saúde e educação em frente à prefeitura. Fomos atacados, oprimidos, dispersados, mas nunca esqueceremos o dia em que gritamos “Basta!”.
Aquele dia foi mágico. Mostrou o poder da mobilização, dos nossos ideais. Mostrou que somos capazes de qualquer coisa quando estamos em rede.

E continuei. Entrei na faculdade, na sexta lista de chamada, sem dinheiro nem para fazer a matrícula. Quase perdi a vaga. Minha avó arrumou R$ 50, fui com ela e consegui no último minuto. Foi a melhor coisa que aconteceu. A UFF foi mais que uma universidade para mim.
Como um afeto me disse certa vez: “Iago, para você, a UFF foi uma mãe.”
E foi, de certa forma. Mas eu me propus a ser um bom filho. Até porque eu precisava daquele espaço. Ou era ali, ou era Belford Roxo, com sua violência e descaso. Sempre busquei reivindicar meu território, mas não pude exercer muita coisa por lá. O risco era imediato. Talvez nem houvesse um aviso antes de acontecer.
Mas antes de ser parte da universidade, precisei encontrar formas de me manter. A entrada é gratuita, mas a permanência custa caro. Paguei com tempo, com insegurança, com fome, com frustração e com minha força. Demorei três semestres para morar perto da faculdade. Antes, eram quase cinco horas diárias de deslocamento entre Belford Roxo e Niterói.

Para vocês terem uma ideia: se eu saía da faculdade às 18h, chegava em casa, em média, às 22h.
Mas e aí? Vai chorar para quem? Você acha que eu podia desistir? Se duvidar, meu caso nem é dos piores. Tem gente que se sacrificou muito mais por um diploma, por uma vida melhor. Porque o CEP já indicava um destino certo, e tivemos que reverter essa lógica, ser o modelo, em busca de nos tornarmos espelho.
Coloquei na cabeça que todos os meus amigos deveriam estar ali. Nada justificava que não tivessem as mesmas oportunidades que eu. E aqueles que lá estavam não faziam ideia de quantos ficaram para trás nessa peneira. Fui atrás disso também. Comecei a pesquisar Cotas Raciais, Políticas Públicas e Relações Étnico-Raciais.

Entrei em espaços que nunca nem imaginaria, debati, fui chamado para palestrar, ajudei a coordenar as comissões de heteroidentificação em todos os campi interiorizados da universidade. Isso tudo na graduação. Depois fui secretário da Assessoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da Universidade Federal Fluminense.
Participei de comissões de sindicância, fui convidado até mesmo quando já não fazia mais parte da assessoria. Fui visto, lido, elogiado e, nos meus trabalhos, questionei um pouco dessa peneira que quase me impediu de ter essas oportunidades.
Na universidade, descobri o mundo. Descobri que fazia parte dele. Que eu podia mudá-lo, mesmo que no micro. E eu busquei. E acho que consegui. Minhas pequenas ações geraram pequenas mudanças. Algumas, significativas. Aproveitei tudo o que aprendi no Ciep 175 e aprimorei.

Fiz documentários, ganhei prêmios, certificados, viajei o Brasil. Virei Mestre por um dos melhores programas de pós-graduação em Antropologia do país.
Mas tudo isso foi à base de dor, como foi fora também. Houve um momento em que não queria continuar. Me ausentei da academia, fui para São Paulo, entrei no mercado de trabalho, numa agência de marketing industrial. Usei tudo o que aprendi. Agradeço à revista Menó, pois sem ela não teria conseguido o emprego. Mostrei que sou capaz. Fui elogiado. Nas idas e vindas da CPTM, nos vagões lotados, na loucura da Babilônia paulista, provei de novo do que sou feito.

Agora estou no Espírito Santo, em Vitória, num trainee que busca me desenvolver para ser uma liderança na educação. Mas esse desenvolvimento começou ali, em Belford Roxo, em São João de Meriti, naquelas paredes de concreto e aço projetadas por Darcy Ribeiro e executadas por Brizola. Foi lá, naqueles projetos, naquele sopro de esperança, naquele espaço seguro diante da violência que me assustava e assolava.
O MEU TERRITÓRIO ME TROUXE ATÉ AQUI.

Minha força, meus afetos, meus amigos, meus familiares. Foram eles que pavimentaram as estradas, que me ajudaram a desbravar os caminhos. Eles e eu. Porque ninguém faz nada sozinho.
É impossível me render a qualquer discurso que tente ditar quem sou ou para onde vou. Já mostrei, desenhei, expliquei: sou fruto da esperança. Sou menos uma estatística. Represento todos os meus irmãos que não chegaram, que foram impedidos, que ficaram para trás.
EU SOU A PRÓPRIA BAIXADA FLUMINENSE!