top of page
  • Instagram
  • Facebook
  • Twitter
  • YouTube

Busca ativa

Atualizado: 15 de jun. de 2022

Por Thiago Sento Sé


O ano letivo tinha começado agitado. A escola lotada, com direito até a uma porradaria na hora da entrada. Certamente alguma treta de bola ou garota, mal resolvida durante as férias. Um calor infernal e como de costume, alunos passando mal e vomitando por causa do forte calor das salas abafadas.

No turno da noite, não foi muito diferente. Os jovens e adultos chegavam lentamente. Era preciso esperar o único ônibus da região, que estava sempre atrasado, com os alunos dos bairros vizinhos para que pudéssemos começar o último turno de aula.

Já em sala, em meio ao calor e o barulho infernal da turma, nenhuma novidade até então. Alunos delinquentes, envolvidos com tráfico, alunos com necessidades especiais, alunos idosos, outros esgotados das jornadas de trabalho, da lida com os filhos e a casa. E para completar, o senhor Josias, um bebum inveterado que sentava na primeira fila. Ficava virado para trás, sempre falando mais alto que todos e espalhando seu hálito etílico pela atmosfera quente e abafada da sala. Porque diabos alguém se senta na primeira fila e fica completamente torto, virado para trás o tempo todo? Porque esse diabo não se senta no fundo da sala de uma vez?

Depois de dois tempos seguidos, eu me dirigia para a sala de professores para aproveitar meu intervalo. Respirar um pouco, comer um doce e beber uns copos de café, você sabe...Aquela dose de energia necessária quando chega as 20:50 e ainda é preciso voltar para mais dois tempos, antes de cair na estrada novamente por mais algumas horas. Foi justamente nesse caminho que Lara, uma jovem da mesma turma veio me trazendo a novidade.

— Dora tá louca professor, agora botou uma placa de “vende-se crianças” no portão da casa dela.

Contava a moça enquanto ria alto e descontroladamente. Pensei na figura de Dora e na suspeita dos professores de algum distúrbio mental não diagnosticado que girava entorno dela. Segui até o fim da aula cansado, e triste, por aquelas pessoas e por aquele lugar.

Na semana seguinte quando cheguei na escola os alunos do turno da tarde avançaram em minha direção. Eufóricos, anunciaram que não teria aula. Estranho, lá sempre tinha aula. Até mesmo quando faltava luz ou água. Dessa vez o motivo era falta de luz e água. Realmente, nesses anos todos nunca havíamos ficado sem luz e água ao mesmo tempo.

As coisas iam de mal à pior!

Depois de passar pelo grupo de alunos entrei na escola e encontrei Rosa, nossa coordenadora do turno da tarde na sala de professores, onde mesmo no escuro era possível ver a indignação de meus colegas. A orientação da Secretaria de Educação era que os professores permanecessem na escola sem luz e sem água, cumprindo seus horários. No meu caso isso significaria ficar até o final do turno da noite, sem fazer nada naquele fim de mundo. Diante disso, me pareceu um bom negócio quando Rosa me propôs dar uma carona para ela até Nova Cidade, e verificar porque dois irmãos da Pré-Escola não estavam frequentando as aulas, num procedimento chamado de “busca ativa”.

No caminho Rosa falava da situação problemática. Eram os filhos de Doralice. Guto e Gustavo, de 4 e 5 anos. Doralice vivia em situação complicada, ainda mais depois que o posto de gasolina de Nova Cidade tinha fechado, lugar onde ela tinha aprendido a se prostituir ainda na infância.

— Nova Cidade é que nem rabo de cavalo, só cresce pra baixo.

Falava a pedagoga que vinha ao meu lado no carro.

Pela rodovia federal, vimos o esqueleto do posto de gasolina, e do outro lado da pista uma placa sinalizava o desvio para Nova Cidade. Chegando no endereço Dora nos recebeu com surpresa no portão, e em seguida dirigiu um olhar de desprezo para minha colega de trabalho. Nova Cidade não passava de um vilarejo miserável as margens da BR 101. Pelas ruas de terra a poeira subia, e o que se via além das casas de tijolos eram apenas anilhas de uma obra de saneamento básico que nunca aconteceu. No lugar de calçadas só se via mato. A casa de Dora, de tão velha parecia que iria desabar. Tudo o que se via era velho, feio e miserável. Para completar, o calor e o esgoto a céu aberto deixavam o ar insuportável.

— Dora, porque os meninos não estão frequentando a escola? A você sabe que por lei eles devem estar estudando né?

— Ora dona Rosa, a senhora pode ter certeza que as crianças estão muito bem. Eu vendi Gugu pra uma família lá de Perobeba. Eles me pagaram um bom dinheiro e levaram o menino. Veja você mesma.

E tirou de um envelope a foto do menino, muito bem vestido por sinal. Usava roupas novas. De terninho, estava de pé num jardim sem flores, mas com um gramado muito bem tratado e uma belíssima casa ao fundo. Mas havia algo de estranho naquela foto. O menino parecia muito sério, e apesar de bem gordinho parecia pálido. A imagem de uma criança, vestida como um adulto, nenhum brinquedo por perto. Não se via qualquer traço de alegria em seu rosto, e nem de felicidade em seus olhos. Foi justamente aí, que reparando bem nos olhos do menino, vi que pareciam furados. Isso deixou tudo ainda mais estranho. E Doralice continuava:

— Ainda me enviam dinheiro toda semana num envelope. Já comprei comida, sabão de se lavar e tô até querendo compra um fogão, um fogão de verdade, com botijão e tudo menina. Além do mais, dona, tô cansada de vê criança morrê no meu colo, sem eu pode faze nada...sem remédio, sem nada! Esse ai vai ser o próximo! O casal de Perobeba gostou tanto do Gugu que resolveram levar o Guto também, né meu filho!

Virando-se para o menino de cinco anos e gritando em sua direção:

— Engole o choro moleque, e fica ai dentro pra não se sujar, porque sua família nova vai vir amanhã pra te levar!

Loucura, miséria...

De posse do endereço em Perobeba Rosa fez com que a gente seguisse na nossa missão pedagógica de busca ativa, com a promessa de que me daria um dia de folga durante a semana, o que ainda me renderia uma bela economia de combustível. O problema era que nem eu, nem ela, conhecíamos Perobeba. A única referência era Padre Fabiano, um jovem pároco que esteve à frente da igreja que ficava na praça perto da escola e havia sido transferido para lá já a alguns anos. Rosa achava tudo aquilo normal, e até relativizava. A mulher já havia perdido 5 filhos para a fome e a doença. Não queria ver os dois mais novos morrerem também. Aquele tipo de “adoção” era inclusive comum nos lugares mais pobres, e tinha até um nome bastante sugestivo, “à brasileira”.

O tempo começava a mudar, tornando o ar mais húmido, porém, não menos quente, e depois de 45 minutos de estrada chegamos em Perobeba. O lugar parecia um pouco mais desenvolvido, mas não passava de uma praça com 3 ou quatro ruas, todas calçadas com paralelepípedos. A velha igreja estava lá. Em estilo barroco, o barroco pobre, típico das regiões do Brasil que não se desenvolveram. A fachada pintada de branco banhada pelo sol evidenciava os caroços do emboço feito porcamente, e até os arcos eram visivelmente fora de esquadro. Enquanto bebíamos um pouco de água o jovem padre olhava desacreditado o endereço.

— Acredito que deva haver algum engano. Não existe nada nesse endereço. Apenas uma velha estrada que não passa nem carro de boi.

Mas Rosa com seus 20 e poucos anos e todo furor pedagógico nos fez ir até o endereço. O Padre percebendo a cilada se ofereceu a nos acompanhar.

A estrada era realmente horrível e os paralelepípedos deram lugar a um chão de terra esburacada. Os pastos sem fim, deram lugar a um mato alto muitas vezes invadia a estrada, e foi justamente no meio desse matagal que vimos primeiro uma cerca caída, e logo em seguida, ao longe, a grande casa da foto. Além da forma, nada mais lembrava aquela casa da fotografia. Estava abandonada e caindo aos pedaços. Tudo estava destruído. Portas, vidros, e até mesmo um pedaço do telhado havia desabado. Uma placa tão velha quanto a casa confirmava o endereço. Quando parei o carro nuvens pretas tomavam conta do céu, mas uma estranha luz de sol iluminava o lugar. Parecia que nada tinha vida por ali, nem um vento batia. Nem um ruído vindo da natureza. Por mim aquela busca tinha se encerrado ali, mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa Rosa desembarcou e entrou pelo terreno. Padre Fabiano foi logo atrás, e pude perceber quando ele tirou do bolso uma pequena cruz de prata. Fechei o carro e fui atrás.

De um lado uma enorme figueira seca e retorcida com galhos brancos apodrecidos, e do outro, um pequeno espaço entre o mato que avançava selvagem pela cerca e a casa, formava um estreito corredor para os fundos, por onde seguimos, até que Rosa parou. O jovem padre apertou sua cruz contra o peito, e eu pude ver um pequeno cemitério familiar nos fundos da casa, desses que eram relativamente comuns aos mais antigos. Passei pelos dois me aproximando um pouco mais e pude perceber o chão duro se transformando em uma terra fofa debaixo de meus pés. Uma estranha energia correu pelo meu corpo. Diante da pedra que marcava o local do sepultamento observei uma pequena moldura com a foto em preto e branco. As peles brancas e sem vida contrastavam com as roupas e cabelos escuros do casal. A data de falecimento era de aproximadamente 70 anos. Ao lado 6 cruzes de madeira, bem mais modestas e a última com a terra ainda remexida. Presa nessa cruz uma pequena moldura, e atrás do vidrinho a foto do menino, pálido, de terninho, expressão séria e os olhos terrivelmente furados. Demorei alguns segundos ali, e quando me virei, Rosa e padre Fabiano ainda permaneciam paralisados. Não restava dúvidas, o menino estava morto e enterrado. E não havia mais nada que pudesse se fazer ali.

Sem trocar muitas palavras, e quase sem acreditar. Meu estômago se revirava. Aquilo parecia um pesadelo, mas era terrivelmente real. Precisávamos falar com Dora, e com as autoridades. Mas não conseguimos ir muito longe. Pouco antes de chegarmos a velha igreja para deixar o padre a chuva caiu. E caiu com força, alagando as estradas e interrompendo a comunicação, de forma que tivemos que nos abrigar na igreja, o que tornava tudo ainda mais exaustivo.

Assim como toda chuva de verão, no fim da madrugada ela estiou. Engolimos um café com pão e saímos nas primeiras horas do dia, antes mesmo do sol subir em um lindo céu azul. Apesar, de termos passado a noite em claro, parecíamos incrivelmente renovados. Seguimos para Nova Cidade para falar com Dora pela estrada enlameada. Tudo parecia muito estranho, aquela energia renovada criava um paradoxo a descoberta do destino do menino, e, que agora estávamos prestes a contar para aquela mãe. Mas nada foi mais estranho do que o alivio que senti ao chegar até a frente da casa de Dora, e ver que agora a velha casa se resumia a uma pilha de escombros, derrubada pela forte tempestade da noite, e debaixo dos escombros estavam todos mortos. Dora e seu único filho que restava. Não havia mais nada que pudéssemos fazer ali.


Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
logo.png
  • Branca Ícone Instagram
  • Branco Facebook Ícone
  • Branco Twitter Ícone
  • Branca ícone do YouTube

Todos os Direitos Reservados | Revista Menó | ISSN 2764-5649 

bottom of page