Cheiro da Brisa
- Marcelo Sophos
- 29 de dez. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 1 de jan. de 2022
Por Marcelo Sophos
Essa noite me pareceu um conto do nosso querido velho maldito Charles Bukowski. Estava em casa tentando assistir pelo computador, via online, ao espetáculo do Rock n´Rio. Esse era o ano de 2011 e ainda morava em Cabo Frio, região dos lagos, interior do Estado do Rio de Janeiro. Havia passado num concurso de professor e acabei me mudando para lá. Como não havia amizades locais ainda, me distraia como podia, geralmente nas belas praias e no álcool a noite, para me aquecer longe da família e de meus velhos amigos irmãos, menos quando precisava trabalhar é lógico. Voltando, a conexão de internet dessa época era péssima, no auge do seu um megabyte, deixando a imagem quadriculada e a todo momento perdendo o sinal. Me levantei impaciente e resolvi ir para um bar de rock conhecido, na orla da Praia do Forte, que se chamava atrativamente de Tocaia.
Como as coisas são curiosas, se eu tivesse ficado em casa e visto mal e porcamente pela tv e depois dormido, não teria essas rápidas histórias malucas para escrever dentro de uma outra história que é a minha. A vida é movimento, ou devir como dizia Heráclito. Bem, tomei uma dose extra de whisky Chivas dezoito anos que ganhei de aniversário do meu cunhado, a vida naquela época não era tão difícil com a continuação do governo de esquerda. Enfim, tomei mais uma dose saboreando aquela delícia de ouro líquido enquanto fumava um baseado. Quando terminei de me arrumar, nada elegante, de bermuda e chinelo, afinal era um bar descontraído e aberto para a rua, na cara da praia, me adiantei e sai. Parti em direção ao bar, sentido orla, não era distante, apenas uma meia dúzia de quarteirões. Sozinho pela noite, numa cidade estranha para mim, desconhecida e aberta de possibilidades e de pensamentos, tudo podia acontecer, desvelando-se potencialidades infinitas.
Solitário em ruas desertas, segui em direção ao mar, é muito bom caminhar em direção a ele, sempre tenho boas vibrações é como se o vento mostrasse sua aproximação com seu cheiro salgado, nos purificando. Até que avistei o boteco mais rock ‘n’ roll da cidade, pelo menos era, e foi por um tempo. Me contaram que ele já teve seu auge, assim como o próprio rock contestador, que felizmente ou infelizmente, nos dias de hoje, sua raiz permanece viva nos guetos dos guetos, e não esses falsos coroas boomers do rock em suas motos barulhentas e seus bares bacaninhas que ostentam a bandeira do brasil, vivendo em seu mundo distorcido e fascista. Claro que não são todos, nunca são todos. O rock é liberdade, anárquico e contestador, um dia ele volta, ele sempre voltará, pois, a rebeldia é o grito da alma humana contra esse sistema podre e falido.
O clima estava agradável, sentei para tomar minha primeira cerveja, bem gelada por sinal, no telão full HD do bar, rolava o final da apresentação da banda Snoll Patron. O dono do estabelecimento, de cabelos brancos estava trincado no pó e não parava de falar, estava numa animação desmedida, pois iria no final de semana, melhor dizendo, domingo, 25/09/2011 para o mega espetáculo elitista Rock In Rio, ver sua banda favorita, o Metallica, ou seja, hoje, dia que escrevo esse conto.
Eu estava em paz, pleno e satisfeito com minha trajetória de vida até ali, não era todo dia que nos sentimos assim. A brisa fria da orla que entrava refrescava o calor, via meu rock de boas refletindo sobre o mundo. Próximo a mim, na minha esquerda, havia outro coroa, estava tentando ganhar uma quarentona muito louca de goró. As minhas costas, um rapaz tocava “ao vivo”, baixinho para o lado de fora, apenas para as moscas, era quinta-feira de madrugada, e havia apenas, sei lá, umas cinco pessoas, sem contar o dono atendente e sua “fiel” esposa. Dizem que ela tirou o cabaço de muito moleque roqueiro da cidade, se é verdade eu não sei, mas já vi ela dando muito mole para alguns, inclusive para um ex-aluno meu, foi até meio surreal, levantando a saia e mostrando a bunda, mas isso é uma outra história que testemunhei na vida boêmia. E como um amigo me falou certa vez: “porque se mostrou, é o seguinte...conselho de um pai velho...cheio de cabelos brancos hétero cis normativo. Melhor você dizer que comeu. Porque se uma mulher te mostra a bunda, você tem que comer. Não importa o quão feia e nojenta ela possa ser...”.
O show mais aguardado, aquele que encerraria a noite, era da banda muito querida pela geração dos anos 90, o Red Hot Chilli Peppers, particularmente não achei muito bom, talvez estivesse cansado, ou realmente o som não estava legal. De repente, chegou um senhor aparentemente louco, ou era apenas um artista bêbado de cachaça que dançava em troca de algumas moedas ou cigarros por sua performance, o problema é que ele dançava sem pedir e ficava puto, pois ninguém lhe dava dinheiro, apenas uns varejos, e não demorou muito para ele chegar até mim. Dançou, fez sua graça, e até que o velho dançou relativamente bem, para quem não se aguentava em pé, mas não iria dar dinheiro para ele é claro, primeiro porque não tinha sobrando, segundo porque não cobrei por uma aula de filosofia indireta, então ficou tudo quitado.
Conversamos um pouco, ele me mostrou uns CDs próprios que ele vendia em búzios por trinta reais cada, para eu, um professor, eram apenas dez reais, como sou professor de filosofia caiu para cinco reais. Curioso, será que ele achou que somos mais pobres que os outros professores ou foi por respeito ao pensamento filosófico? Ele acabou por me convencer, fiquei até surpreso com esse artista inesperado, fui comprar um dos CDs, mesmo não gostando muito do estilo de música, que era forró, e para minha surpresa, não tinha dinheiro, apenas o suficiente para duas cervejas e o cartão, bem, o bar não aceitava cartões o que foi um problema. Infelizmente não pude dar uma força para senhor dançarino, músico e poeta, um artista completo, então ele rodou um tempo por ali com suas danças e rodadas de chapéu e se mandou para búzios, para mais shows de rua, muito louco. Para mim ficou uma lição que havia esquecido, não subestimar os doidos e bêbados de ruas, eles ainda carregam aquela alma do velho romantismo alcoólatra, das gerações beatniks, verdadeiros “vagabundos iluminados” como diria Jack Kerouac.
Debruçado sobre o balcão do bar, limitado a apenas uma cerveja, fui sorvendo lentamente o ouro liquido, enrolava em cada gole para tentar chegar até ao final do Red Hot antes de pedir outra. A quarentona bebaça, do nada, xingou alto e se estressou, saindo fora do coroa, indo para o seu grupo de amigos do outro lado, o cara ficou muito puto; pelo que eu entendi, ele falou alguma merda para mulher, não estava prestando muita atenção nesse momento, mas nas conversas anteriores percebi o perfil do cara. O típico macho escroto, provavelmente pensou que por ela estar alterada de cerveja, que ele arrumaria uma transa fácil, vulgarizando a mulher por suas roupas curtas e coladas, ela não quis ficar com esse babaca. Ele ficou lá, nem se abalou, devia estar acostumado a ser rejeitado, devia até se orgulhar de ser tosco, olhava sem pudores para as partes intimas das minas enquanto falava gracinhas machistas com o dono do bar.
Enquanto assistia a televisão, apareceram uns jovens que marcaram poucos minutos, tomando seus vinhos baratos, foram comprar uns cigarros a varejo, havia um punk entre eles, todo descolado com seu moicano e suas roupas rasgadas, todos jovens. O “futuro da nação”, pensei, não de forma pejorativa, acredito na liberdade dos indivíduos de traçar seu próprio destino e respeitava demais o estilo de vida de cada um, pé na estrada baby. Foram chegando outras pessoas, do lado de fora, nas mesas ficaram a turma do punk, outro grupo jogando cartas que voavam com o vento, um casal que assistia o rapaz tocar, e uma mesa próxima do balcão que me encontrava estavam duas gatas conversando sobre algum papo cabeça ou de suma importância, pois o mundo não exista para elas ao seu redor.
Tudo tranquilo, perguntei para a mulher do bar se iriam estar aberto na hora do metal, no domingo, quando chegou uma moto barulhenta no estilo Harley-Davidson, não entendo de motos, era tipo aquela do Exterminador do Futuro. O cara chegou com seu jaquetão de couro preto no melhor estilo dos motoqueiros, conhecia o dono do bar, pediu uma cerva que entornou praticamente de primeira e foi direto para o banheiro dar um teco, uma cheirada, voltando transtornado e com a cara torta. Pediu outra rodada, e só depois foi olhar ao seu redor, quando me viu, ali silencioso vendo à TV, estava na cara que ele queria falar, se comunicar, pois a onda bateu forte. Eu estava seco, havia tomado toda minha última latinha, sem grana, apenas com meu cartão, que de nada serviria.
Não demorou muito para o cara puxar assunto, trocamos algumas ideias aleatórias: “como está o rock?”, “e esse rock n rio como tá?”, “sai do trabalho só agora”, essas coisas. Ele percebeu que eu não estava bebendo e perguntou se eu queria tomar uma, expliquei a situação e ele apiedou-se dessa alma alcoólatra e me pagou umas quatro cervejas. O foda que com isso teria que dar atenção ao cara, mas tudo bem, ele era gente fina e estava prestando um favor a ele, ter que aturar sua loucura de pó. Falou que trabalhava pesado numa plataforma petrolífera em Macaé e como era explorado em seu trabalho terceirizado. Entrei com o discurso marxista, luta de classes, alienação essas coisas, para buscar esclarece-lo do necessário levante popular para uma real melhoria da sociedade. Foram conversas doidas, íamos da revolução industrial aos illuminatis, naquela altura da bebedeira, tudo fazia certo sentido, consegui caminhar pelas loucuras do pensamento do sujeito e também talvez ele das minhas, quem sabe...
O show do Red Hot estava chegando ao final. O rapaz da porta parou de tocar suas músicas. Outro grupo chegou ao bar, um jovem com quatro gatinhas, não era lugar pra eles, o bar era muito alternativo, aqui na terrinha a massa é pagodeira ou funkeira, após uma rodada de bebidas, partiram. Tomei minha quarta cerveja, agora que tinha percebido que o cara era gaúcho, tinha ido novamente ao banheiro dar seu tequinho. Aproveitei a deixa, decidi voltar para casa, deviam ser umas três horas da madrugada, ainda cedo, mas já estava bom, chega de aturar gente doida. Voltei tranquilo, sentindo o cheiro da brisa, o vento novamente me livrando das vibrações estranhas que esses bares carregam, encostos perdidos, sejam vivos ou mortos.
Revista Menó, nº. 3/2021 (out/nov/dez).
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