“Presta atenção, nêgo, nas histórias que eu conto/ Eu tive um coração partido, e eles atiraram pra matar no meu mano/ Senti uma pedra no vidro e os sentimentos foi estilhaços no piso/ Eu tive que ser frio, e eu só te conto minhas histórias por isso…” - Quer Contar Sua História, VND;
Você já parou para pensar, por um tempo, caso tenha tido esse privilégio, em toda a sua trajetória?
Já refletiu sobre o fato de que você é uma construção, e que cada pessoa, lugar, sentimento, cada detalhe, moldou o que você é hoje?
E que, a partir das suas ações, você também molda, de alguma forma, o que é este mundo?
Nossas histórias se cruzam, se tornam uma só ou se diferenciam; se perdem, ou são descobertas; são construídas, ou destruídas; são escritas, cantadas, ensinadas; são o registro dos nossos passos rumo ao fim.
Essas histórias, os vestígios dos nossos passos, são o que deixamos para o mundo quando partimos. E a analogia dos passos é poderosa: quanto mais caminhamos, menos rastros restam dos nossos primeiros passos.
“Outro livro, uma história velha que ninguém te contou” - Cinzas de Quarta-Feira" ft. Sant
São histórias que se cruzam.
Histórias que não serão esquecidas.
Histórias que se confundem com a minha.
Narro uma história em especial, que acredito que reaquecerá também suas memórias, pois ela se cruza com as suas. São histórias construídas a partir de um mesmo ódio, de uma mesma hipocrisia, da mesma angústia, e de uma fuga do mesmo sentimento de falta.
“Diamante do gueto da lama lapidando negros num lugar que não tem nada além de falta.” - Iluminado, VND;
Faço isso acompanhado de uma trilha sonora lindíssima: o profundo novo trabalho de VND, “Onde as Histórias se Cruzam” (2024), seu segundo álbum. Naveguemos nesse mar de palavras, guiados por suas composições tão cuidadosas, empáticas, críticas e profundas. Letras e rimas que nos fazem lembrar e sentir.
Sua voz dá significado a todo esse sentimento, solidificando seus versos. A produção musical, em sua completude, encanta, pois ele sabe do seu lugar como um dos melhores da geração.
E isso não tem nada a ver com números, embora VND também tenha sucesso nesse aspecto, especialmente para um artista independente. Trata-se de qualidade, de ser verdadeiro consigo mesmo e com seus sentimentos.
De não tentar ser mais do mesmo. De fazer algo que tem um significado maior do que o que está posto aí. Um ato carinhoso e empático, de resgatar outras histórias que foram esquecidas por conta do lugar de origem, ou, na maioria das vezes, pela cor da pele.
As histórias contadas por VND se cruzam com as nossas, pois viemos de um mesmo lugar. Representamos o mesmo perigo. Resistimos.
“Sе somos todos irmão, porque que minha visão é só das costas do Cristo?” - Quer Contar Sua História, VND;
Seu novo trabalho, “Onde as Histórias Se Cruzam” (2024), é encantador, mantendo o mesmo nível do anterior, mas com uma proposta mais madura. Ele fala de um momento de vida diferente, não tão focado na sobrevivência como antes, mas ainda sobrevivendo.
Esse é o exercício que quero propor aqui: lembrar das outras histórias que se cruzaram com as nossas e o quanto elas foram importantes na construção das nossas próprias histórias.
Uma tentativa de resgatar uma memória, mesmo que parcial, para eternizá-la nesta escrita. E com isso, lembrar de alguém que, desde o seu nascimento até a sua morte, teve sua memória negada.
“Falo de saudade, alguns males do meu mano que morreu com vinte/ Da vadia que era de verdade, custei entender/ E eu tinha outros planos com dezenove/ E o medo de ser mais um cara…” - Espaço no Peito, VND;
Lembro do Yuri, preto, baixinho, não tanto, mas eu era mais alto—o bastante para incomodá-lo. Era nítido que ele não gostava de ser baixinho.
Yuri era marrento, posturado, com um olhar obstinado. Estava a anos-luz de mim naquele momento, vivendo em outra velocidade. Mas, por conta da minha amizade com o primo dele, convivemos, nos encontramos com frequência por alguns anos.
Lembro de onde ele morava, um lugar perigoso, não muito agradável, mas com pessoas incríveis, que, infelizmente, conviviam diariamente com uma violência implacável.
Uma violência movida por uma milícia em guerra com o tráfico de drogas, disputando território e deixando o lugar com um clima pesado.
Ele veio de lá, daquele chão de bairro, das casas sem reboco; em meio à pobreza e à ostentação do crime; tantas perguntas, poucas respostas.
Uma vida inteira em menos de duas décadas. Tudo é imediato, a vida sempre por um triz, a prisão que nosso CEP pode se transformar.
“Eu vim de lá, sem perspectiva/ Na cabeça roleta russa / sem saber para onde vai, onde fica. / Eu me vi perdido, e a rua me ajuda/ Que faz o palhaço sorrir, te esqueceram no fim do circo / As histórias se encontram aqui, / o final é sempre parecido…” - Eu vim de lá - VND
Quando escuto VND, me sinto parte de uma mesma história. Uma história que contempla milhares de negros, jovens, que sobrevivem nas periferias brasileiras, que cometem erros e acertos por serem humanos, mesmo que alguns não aceitem isso.
VND é um artista com um olhar tão poético e bonito, que tem o capricho de observar o seu redor com empatia. Mesmo sendo testemunha de tantas injustiças, medos e angústias, ele consegue transformar suas observações em letras milimetricamente formadas, em palavras que, com tanto cuidado e amor pela sua arte, se transformam em frases.
E essas frases ganham ainda mais vida, tornando-se sons potentes, que nos fazem sentir—e muito. Essa potência que VND emana da sua alma ganha um plano de fundo, sendo trabalhada e transformada em música.
Onde os produtores musicais se cruzam com beats de wavybil, LB Único, Gabriel Maré, Babidi, LP Beatz, CESRV, Luna, Chris Beats Zn, OG Parma e Tarcis. Um grande time de peso que dá corpo a esse excelente trabalho.
Além disso, há as participações de SD9, Juye e Sant, velhos amigos do rapper, vozes que habitam o imaginário dos seus álbuns, colaborando com suas histórias, exprimindo também suas experiências.
VND, Pivete, Yuri, Maurício—são muitas as coisas que nos diferenciam, além dos nomes. Mas tantas outras nos aproximam; somos homens, negros, pobres, sobrevivendo nas periferias e subúrbios do Rio de Janeiro.
O que difere Yuri de nós?
“... Debaixo dos olhos a vida sopra como um vulto / Sei quem sobrou vivo pra contar o que ninguém contou / Sei quem correu risco, abriu a boca e se prejudicou / Perdi uns amigo e tô tentando não perder o amor / Merdas nas esquinas, tudo isso foi o que me formou” - Te Falta Ódio, VND.
Yuri dava rolês de moto. Alguns diziam que ele roubava, outros que não estudava, muitos que ele não teria futuro. Poucos viam ali um menino perdido, como tantos outros cujas histórias conhecemos bem.
Meninos, reféns de sua própria história.
Uma história sobre a qual não temos controle em boa parte do seu desenrolar.
Se é ladrão, tem que morrer. Se não estuda, tem que apanhar.
Yuri, mesmo novinho, já não era visto como criança, adolescente, ou até mesmo como um menino. Ele era visto como cria, tralha, Bebel, menor de idade, menor infrator. Depois que o boato de que ele era bandido se espalhou, ele perdeu até sua humanidade, entrou na fila de descarte. As ruas sumariamente decretaram seu fim.
O que sobrou de Yuri são as histórias de quem sobreviveu para contar, de quem viu e ousou falar, de quem se importou o suficiente para lembrar.
No final, são só histórias.
“Meninos viram homens mais cedo, mulheres aprendem bem mais rápido / Ninguém fica pra ser testemunha (Ninguém)” - Cinzas de Quarta-Feira" ft. Sant
Quando eu descobri que ele estava envolvido, era tarde demais. O que fazer?
Eu não era nada, nem éramos tão próximos. Eu não conhecia ninguém, também não sabia de nada. Tinha os mesmos questionamentos, era fudido igualzinho, só não tava na pista porque, "lerdão", eu não tinha o que oferecer.
Se fosse hoje, eu conversaria, tentaria mostrar uma realidade melhor. Mas eu, indiretamente, estava vivendo aquela mesma realidade, sofria de outras formas, com a mesma violência, a mesma falta.
Só não tive disposição para colocar o ferro na mão.
E eu nem sei se ele teve também, talvez morreu de bucha.
Como muitos.
Eu só sei que me falaram, mas como falam, principalmente se você parecer com o que eles acreditam ser o criminoso ideal.
“O tempo das coisas não sou quem dita / Faz o 'teu dinheiro a vida continua / Seja o lapidário da sua própria vida / Diamante do gueto essa luz é sua” - Iluminado - VND
Eu queria sair de Belford Roxo, sobreviver. Ele devia querer o mesmo. Nunca cheguei a conversar com o Yuri sobre essas coisas, mas sei que ele queria viver, ganhar dinheiro, ostentar, pegar mulher.
Seu rosto e seu corpo carregavam as marcas de uma vida difícil. Sua casa era simples, e sua moto era uma das poucas conquistas que ele tinha. Ele era amado e querido por uma grande família preta, que sofreu muitas perdas. Nesse pouco tempo em que nossas histórias se cruzaram, foram quase uma dezena de corpos negros.
Poderia ter sido eu, ou o Maurício. Poderia ter sido meus outros amigos, poderia ter sido você. Foram tantos pretinhos que sei que muitos nem lembram mais do amigo.
Não culpo eles, a vida é movimento.
“E eu tinha outras metas com dezessete \ Era um tanto quanto inconsequente \ E o ódio queimava minha pele \ Nem sentia saudade de nada da vida \ E pra onde foi esse moleque?” - Espaço no Peito, VND;
Mas, por lembrar, quero registrar o que lembro de um amigo, que é isso que ele foi para mim. É o que carrego em minha memória. Sem moralismo. Sem romantismo. Só a minha realidade. O que sei da história.
Esse era o meu privilégio: poder preservar minha inocência até a maioridade, algo que, infelizmente, o Yuri não teve. Ou talvez tenha tido, eu não sei. Só sei o que de fato aconteceu.
Ele foi assassinado antes de chegar aos vinte, talvez aos 18. Tenho uma vaga lembrança de que ele morreu com 16. Se não foi ele, foi outro. Não faltam exemplos quando esse é o assunto.
Eu não sei, só sei o que de fato aconteceu... Yuri morreu, como perecem milhares de jovens negros todos os anos, como falece uma dezena todos os dias, ou um a cada 23 minutos.
“Aqui se constroem sonhos grandes \ Quantos universos em crise \ Quantos sol nascem pra gente?” - Te falta Ódio - VND
Não lembro de quando me contaram, só sabia que já esperavam por aquilo. Eu também, de certa forma, esperava. Isso tudo aconteceu em São João de Meriti, Baixada Fluminense, terra de grupos de extermínio.
Foram anos vendo centenas de jovens serem assassinados, pelos mesmos motivos, pelos mesmos algozes, pelas mesmas armas; os mesmos corpos, as mesmas ruas.
O choro de uma mãe, o corpo negro no chão, o sangue umedecendo o pano da blusa. Lembro do último suspiro, do desespero, do frio na espinha, de pensar: “será que serei o próximo?”
Já pensou que nossas histórias sempre se esbarram precocemente na morte? Que nossa trajetória está em uma dialética maquiavélica com a violência? E que a falta é o motor da vitória e, na maioria das vezes, da nossa tragédia?
São histórias que se confundem com as nossas.
“Se eu dissociar, não me abandone, não se desespere, \ meu coração tem passado por alguns testes.” - Dissociado - VND
VND, ao retratar suas histórias, nos faz pensar nas nossas. Se atentarmos às suas rimas, veremos serem críticas, uma reflexão. Essas músicas não apenas entretêm, mas também eternizam memórias de dias mais cinzas.
Antes de terminar este texto, quero falar de um filme que revi ontem, chamado “Oldboy” (2003), um clássico do cinema sul-coreano dirigido pelo brilhante Park Chan-wook.
O filme aborda a vingança de maneira crua, irreverente e nada convencional. Vale a pena assistir.
O que eu queria destacar, à luz do filme, da história que narro e do aprendizado que é ouvir esse novo trabalho de VND, é uma frase dita por um personagem antes de se jogar do topo de um prédio.
Essa frase, que depois se tornou um mantra para o personagem principal, é um dos detalhes marcantes dessa obra atemporal, recheada de significados e grandes momentos:
“Mesmo não sendo melhor do que um animal, eu não tenho o direito de viver?”
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