Maria Maria, um simples nome de mulher./ Corpo negro de macios segredos, olhos vivos farejando a noite, braços fortes trabalhando o dia. / Memória da longa desventura da raça, física da justiça. / Alegria, tristeza, solidariedade e solidão. / Mulher-pantera, fera, mulher-vida, vivida. / Uma pessoa que aprendeu vivendo e nos deixou a verdadeira sabedoria: a dos humildes, dos sofridos, dos que tem o coração maior que o mundo.
(Milton Nascimento/Fernando Brant)
A quanto andas que não te vejo, está mais velha, mais esquecida. Não que eu queira te ver de novo naquela condição secular de exploração, do qual se aproveitaram para erguer um país. Talvez se tivessem te visto e ouvido, é possível que não tivessem escrito baboseiras sobre a cordialidade, o clima tropical ou a democracia racial, mas entendido o sentimento que funda esta nação, você.
Hoje temos que lidar com o seu contrário Maria, lidamos com a indiferença, do cada um com seus problemas. É uma luta de todos contra todos, porque todos são nossos concorrentes, sempre tem alguém que quer te passar a perna. Se na sua época isso já acontecia, hoje é maior.
É maior porque cada vez mais a minha condição de vida é entendida como culpa somente minha, então tenho que me virar, seja por cima de quem for. Isso é dito nos livros, nas redes sociais, na televisão, pelo meu chefe, por meus amigos. Parece que essa indiferença vai me brutalizando de uma maneira incontornável. Não me indigno mais com a miséria do meu vizinho.
Me entristece saber que um trabalhador foi morto por uma bala perdida no banco do ônibus indo para o trabalho, mas não me movimento, não sei o que fazer. Me contento em não ter sido atingido. Agradecido de ter voltado para casa bem, mesmo cansado, sabendo que amanhã o dia se repete.
Acho que essa violência que somos submetidos vai entrando na massa do sangue. Tanto que às vezes vejo meus irmãos aplaudindo a coça do último ladrão que pegaram. A gente vai normalizando tanto essa guerra que o barulho da bala voando todo dia, já é trilha sonora do cotidiano. Se antes compadecemos das dores do outro, de repente, a indiferença nos domina e só consigo olhar para o meu próprio umbigo.
Vai ficando remota a lembrança de como subimos esse barraco, os mutirões que fazíamos para arrumar água e luz, as discussões na associação. Não tínhamos muitas referências, elas eram nós mesmas: Tiões, Josés, Margaridas, Marias e tantas outras.
Te expulsaram do campo, da sua terra, que mesmo sobre violência dos coronéis as respostas sempre foram coletivas, mesmo sobre a seca, responderam com autonomia de canudos e caldeirões, mas também tantas greves, revoltas, rebeliões e guerras que juntavam diferentes pessoas em causa justa. São nesses momentos que você se via irmanada com a criatividade, resistência e esperança.
Te jogaram na cidade e mesmo assim você teimou em concretizar seu nome, que pode se resumir na palavra comunidade, que só não fomos despejados por conta de muita união dos trabalhadores favelados. Nas igrejas e terreiros, debaixo de uma tamarineira você ganhava vida, alegria e beleza, e de novo, mesmo que te proibissem, fez valer sua cultura, pois ela é a verdade, porque diz algo que compartilhamos, que é humano. Pode ser que sem você, nem humanidade existiria. Tá bom, chega, não quero te fazer carregar todo esse peso.
Quando disse que algo estava oculto, bastava enxergar, queria tentar fazer ver práticas que podem ser banais mais que realizam, por um instante, a saída desse individualismo doentio. De repente solidariedade seja o princípio mais revolucionário nesses tempos sombrios, no qual qualquer gota é cura nas nossas relações, porque dependemos do outro para existir.
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