Morte do Morto: ensaio sobre violência, memória e esquecimento
- Pivete
- 14 de mar.
- 7 min de leitura

Não é normal, sigo enterrando meus amigos. Não está no jornal, os corpos invisibilizados seguem sendo jogados no asfalto quente da Baixada, pois é assim que a sociedade mata o morto.
Este texto foi escrito em 2018, quando eu tinha 22 anos e cursava licenciatura em Ciências Sociais. Ao revisitar escritos antigos, reencontrei essas palavras, carregadas de uma dor que nunca deixou de estar presente. Publico agora na Revista Menó como um ato de memória, para lembrar os corpos esquecidos pela política de extermínio do Estado.
Porque esquecer é permitir que essa lógica continue, e lembrar é resistir.
A Baixada Fluminense é considerada uma das regiões mais inseguras do Rio de Janeiro, marcada por altos índices de roubos e homicídios. Ser um jovem negro na Baixada significa conviver com o risco iminente de ser morto pelo tráfico, pela milícia ou pela própria polícia.

O sofrimento dos parentes e amigos desses jovens vitimados pela violência confronta-se continuamente com a invisibilidade imposta pelo silêncio da dor e pelo silenciamento promovido pelo judiciário e pela mídia. A morte física não encerra a existência do sujeito; ela se prolonga no simbólico, perpetuando-se na luta por justiça e pela tentativa de "limpeza moral" da vítima.
Esse esforço se ancora na crença de que aquele jovem não "merecia" morrer.
Ele morreu mais de uma vez, não ressuscitou, não abriu mais os olhos, nem quando a família chorou, nem quando os amigos postaram sua foto, nem quando a vizinhança murmurou um "mais um". Mesmo com a falência dos órgãos biológicos, trataram de matar ele mais uma vez, e dessa vez foi no campo das lembranças.

A cidade mais perigosa do mundo
A Baixada Fluminense é composta por 13 municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com uma população de aproximadamente 3,7 milhões de pessoas, o que equivale a cerca de 22% da população do estado. Cidades como Belford Roxo, Nova Iguaçu, Duque de Caxias e São João de Meriti são conhecidas pela frequente ocorrência de assaltos, disputas territoriais entre facções criminosas, violência das milícias e homicídios. Como resultado, a região concentra 34% das mortes violentas do estado.
É comum que os moradores tenham algum amigo, conhecido ou parente que foi assassinado, muitos desses casos sequer chegam ao noticiário ou às instâncias de investigação. A falta de visibilidade facilita a manutenção dos altos índices de violência, silencia as vozes de amigos e familiares das vítimas e perpetua a impunidade.
Nascido e criado na Baixada Fluminense, vivi por décadas em São João de Meriti, cidade conhecida como "o formigueiro das Américas" por possuir uma das mais altas densidades demográficas do continente, segundo o IBGE. Posteriormente, mudei-me para Belford Roxo, que já foi considerada a cidade mais perigosa do mundo devido à brutalidade dos grupos de extermínio formados durante a Ditadura Militar, os quais seguiram atuando até a redemocratização.

Nos anos 1980, a ONU alertava para os alarmantes índices de homicídios na região. Mais de três décadas depois, pouco mudou: os grupos de extermínio deram lugar à milícia, ao tráfico e à polícia, sendo esta última a mais preocupante, pois, ao categorizar certas mortes como resultado da eliminação de "inimigos internos", legitima a violência como política de segurança.
O número de mortes por intervenção policial mais que dobrou em cinco anos no Rio de Janeiro, entre 2013 e 2018, mesmo sob intervenção federal na segurança pública. Somente em janeiro de 2018, foram contabilizadas 157 mortes, evidenciando a letalidade do Estado na produção de violência, justificada pela lógica da militarização, que vem pautando não apenas as políticas de segurança do Brasil, mas de vários países ao redor do mundo.
Nesta lógica de guerra, em que certos indivíduos são construídos como "inimigos internos" e, portanto, passíveis de extermínio para garantir a segurança nacional, algumas vidas são lamentadas e dignas de luto público, enquanto outras são ignoradas.
Para estas, resta apenas o silêncio da comunidade nacional, que ora as enxerga como ameaças a serem eliminadas, ora como vidas desprovidas de qualquer humanidade compartilhada, como vemos em “Sobre lutos e lutas: violência de estado, humanidade e morte em dois contextos etnográficos” (2015) de Sanjurjo e Feltran.

Os indivíduos que compõem esse último grupo são, em sua maioria, jovens negros das periferias. Suas mortes não recebem visibilidade midiática nem respostas judiciais; apenas a dor de seus amigos e familiares, que muitas vezes só tomam conhecimento do ocorrido por meio de postagens nas redes sociais. Em momentos de luto, uma frase surge recorrentemente em diferentes formatos: "Ele era trabalhador, não merecia morrer".
Essa expressão revela um mecanismo discursivo que reforça a lógica estatal de que algumas vidas merecem ser preservadas e outras, eliminadas.
O esquecimento é cova rasa, sepultado sem luto, sem velas, sem nome. A cidade segue viva, indiferente, a morte caminha mascarada entre os vivos.

Sua segunda morte foi social.
Fico triste e continuo caminhando, respiro a fumaça preta da cidade, trago a fumaça que adquiri com o que me resta. Sento e faço uma leitura subversiva, e ganho força para gritar mais um pouco pelos meus iguais. Mas sei que a voz do gueto é ruído, e se incomoda, será silenciada. Não sei se terei forças amanhã, não sei se me deixarão vivo dessa vez. Só sei que o peso que aceitei carregar me impede de sorrir toda vez que a alegria me felicita com sua presença.
Me encontro no silêncio dos bons, no escândalo dos maus e proibido de gritar. Se eu me atrever a abrir a boca, há risco de acordar esse povo, povo que está cansado de apanhar, de morrer, explorado por uma elite que cospe no chão que acabou de ser limpo. O medo é câmera de segurança, acompanha cada movimento, cada esquina. Quem denuncia se torna alvo, quem chora se torna estatística.

Ele não "merecia" morrer
O conceito de "merecimento" remete à ideia de possuir as condições desejáveis ou necessárias para algo. Distintos discursos constroem o imaginário sobre quem atende a esses critérios, delineando, ao mesmo tempo, aqueles que são considerados "excluídos" ou "marginais". Esses indivíduos, vistos como desimportantes pelo poder, são percebidos como vidas passíveis de correção ou sequer dignas de existência. Para eles, a morte não é apenas aceita, mas considerada necessária.
Esse discurso encontra eco na adesão crescente à retórica da violência letal, explicitada pela popularização de lideranças conservadoras como Jair Bolsonaro, que, ainda durante sua campanha, declarou ao "Jornal Nacional" que criminosos não eram "seres humanos normais" e que policiais deveriam atirar "10, 15 ou 20 vezes" em cada um deles. Essa fala evidencia a construção do "inimigo interno" e a legitimação de sua eliminação como estratégia de segurança nacional.
Neste contexto, os moradores das periferias frequentemente sentem a necessidade de provar que são "cidadãos de bem". Ao justificar a morte de um jovem negro periférico pela sua condição de trabalhador, tenta-se reconfigurá-lo como vítima e não como inimigo eliminado. Essa busca por uma "limpeza moral" reflete um esforço de contestar a lógica estatal que determina quem merece viver e quem deve morrer.

Sua terceira morte foi política.
Tiros interrompem o silêncio da madrugada, logo após o último estalo, o silêncio novamente grita entre os becos e vielas. Não é duradouro o silêncio e nem a alegria, o choro de uma mãe castiga o coração de quem tem o mínimo de empatia. Mais um menor foi baleado, jogado no asfalto quente, envolto dos braços desolados de uma mãe que chora, e molha aquele corpo já sem vida.
Seu nome agora está numa camisa, estampado numa arte improvisada nos muros da comunidade. Seus amigos seguem, mas nunca os mesmos, a cidade engole suas histórias e finge que nunca existiram.
Necropolítica: quem tem direito à vida?
A realidade da Baixada Fluminense dialoga diretamente com o conceito de necropolítica, cunhado por Achille Mbembe.
O autor argumenta que o poder contemporâneo não se limita apenas a governar os corpos, mas a decidir quem deve viver e quem deve morrer.

No contexto da Baixada, essa lógica se materializa na forma como o Estado, através de suas forças policiais e políticas de segurança pública, estabelece quem merece ser exterminado. Meus amigos, meus conhecidos, jovens negros de periferia, foram vítimas dessa política macabra, tendo suas vidas descartadas pelo aparato estatal ou pela ausência dele.
Viver na Baixada é entender que algumas mortes não geram comoção pública. Algumas vidas são choradas, lamentadas e dignas de luta, enquanto outras recebem apenas o silêncio.
São os corpos descartáveis, aqueles que a necropolítica define como não pertencentes à humanidade comum. A Baixada é um território onde o Estado se faz presente quase exclusivamente para matar, seja pela ação direta da polícia, pela omissão que permite a atuação do tráfico e da milícia ou pela precarização das condições de vida que empurra muitos para a informalidade e para a criminalidade.

Sua primeira morte foi física.
Não é história, não considero isso nem uma poesia, é um relato de vinte e dois anos de tragédias presenciadas e sofridas. Falo em ambientes elitizados, tento lembrar sempre que aquilo não é a realidade, não é a minha vida. Peço perdão aos meus amigos, que já perderam suas vidas. Rezo por aqueles que estão no risco diário, e por aqueles que só querem viver em paz. Busco um dia que não haverá mais mortes nessas linhas, que eu possa ser um poeta, poetizar sobre amor e fantasias, quero um trago de tranquilidade, não quero ter que chorar por mais vítimas, não quero ser uma vítima.
A dor do luto
A dor física que permanece, que não se encerra no instante da morte, é também a dor do luto, da negação, da ausência imposta, da falta que resiste.
O corpo que some não desaparece por inteiro, ele persiste nas lembranças, nos espaços que ocupava, nos afetos que deixou. Mas preservar essa memória é um ato de resistência, porque a necropolítica não mata só no momento do disparo, da tortura ou do abandono – ela se estende no esquecimento, na desumanização posterior, na criminalização da vítima.

Na Baixada Fluminense, essa lógica de descarte se faz cotidiana. São muitos e tão rápido. Não há tempo para velar, para lembrar, para exigir justiça. A cada novo corpo que cai, há uma tentativa de apagar os que vieram antes.
Um ciclo onde a morte se acumula, mas a memória é sempre interrompida. Meus amigos, aqueles que ontem riam comigo, dividiam sonhos e projetos, hoje são números em estatísticas que ninguém se importa. E se importar, se recusar ao esquecimento, se recusar a aceitar que eles eram descartáveis, se recusar a seguir o jogo, é um ato de enfrentamento, um ato político.
A necropolítica de Mbembe se manifesta aqui com uma brutalidade visceral. O Estado define quem pode viver e quem deve morrer. Mas não é só sobre a morte em si – é sobre quais vidas importam, quais são dignas de luto, quais têm o direito à memória.

O jovem negro da Baixada não só morre, ele é silenciado antes e depois da morte. E quem ousa lembrar, quem ousa sentir essa dor e contestá-la, carrega o peso de um luto que não tem espaço para ser reconhecido.
Escrever sobre isso é também uma sessão de terapia. Mas diferente das sessões convencionais, essa não busca apenas elaborar a dor individual – ela precisa encontrar formas de impedir que essa dor continue sendo produzida.
Porque aqui jaz mais do que vidas interrompidas: jaz um projeto de futuro negado, jaz uma juventude que poderia ter sido, mas não foi.
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