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No olhar de uma criança

Foto do escritor:  Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho

Acordei tarde. O calor me fez revirar horas na cama sem conseguir aprofundar o sono, mas a prostração não me deixava acordar. O limbo. Fiquei nesse estado intermediário por um tempo que não consigo definir. Quando acordei doeu, no sentido literal. Os músculos estavam fatigados e o pescoço parecia ter torcido. Também sentia uma dor aguda no fundo da cabeça.

Ainda com os olhos embaçados, peguei meus óculos e levantei com o propósito de lavar o rosto. Minha filha pequena estava postada em frente ao computador engajada num desses jogos multiplayer da internet.

– Que horas você acordou? – perguntei preocupado, ainda zonzo.

– Já acordei faz um tempão – respondeu sem nem olhar para mim.

– O que é isso aí? – perguntei esfregando os olhos para limpar a remela e aproximando o rosto da tela para ver o que estava acontecendo.

– Você não pode ligar e entrar nesses jogos sozinha, minha filha. Tudo bem? Da próxima vez acorda o papai. Está bom?

Ela não falou nada, balançou levemente a cabeça e simplesmente continuou ali jogando. Fiquei um pouco constrangido, depois, irritado. Coloquei os óculos e avaliei que o jogo não constituía uma preocupação imediata. Era aquele jogo com o gráfico todo pixelizado em que o jogador constrói e interage num mundo virtual pela montagem de blocos, criação de itens e ambientes. Fiquei na dúvida se deveria repreendê-la sobre a pergunta que fiz.

– Papai! Olha a casa que eu construí!! – falou com aquela empolgação ingênua das crianças perante qualquer realização.

– Que linda minha filha, muito linda. – falei caminhando para a porta – Vou lavar o rosto e já volta, tá bom?

– Tá bom!

Tudo é lindo aos olhos dos pais. Os pais são o mundo dos filhos na infância. A rejeição é decisiva para tornar a criança um adulto inseguro. A aprovação deve ser vista como incentivo, afinal, estamos lidando com crianças, seres descobrindo seus gostos e talentos.

Lavei o rosto e escovei meus dentes. Não ia tomar banho agora. Voltei ao quarto.

– Quer seu café da manhã? – apenas o som da música ambiente do jogo ressoava como resposta – Hei! Está me ouvindo? – falei com a voz mais um pouco volumosa, mas sem chegar a gritar.

– Não quero – respondeu baixinho, com os olhos vidrados na tela.

– Minha filha, você está há muito tempo nesse computador – tentei uma voz terna.

– Não estou, papai. Acabei de entrar – virou olhando para mim de maneira suplicante – Não tem nada para fazer – concluiu, com uma constatação irrefutável.

Emudeci. Não tinha como inventar atividades mirabolantes o tempo todo. Era necessário cumprir os compromissos da casa e fazer meu home office. Porém, permitir que ela ficasse tanto tempo no computador não era recomendável. Na verdade, não sabia bem o que fazer. Virei as costas e fui preparar o café da manhã. Preparei o meu e o dela. Passei um café. Aquele cheiro de café fresco no ambiente espantou parte da minha dor de cabeça. Fui até o quarto e levei o café da manhã dela primeiro.

– Toma, sua refeição…

– Obrigado, pai – pegou e comeu, como se não tivesse recusado antes – Estava com muita fome.

– Come! Manda ver! – olhei para ela e soltei um pequeno sorriso no canto do rosto.

Liguei a televisão, a primeira coisa que fazia todos os dias da quarentena. Passava o jornal: pandemia se espalhando rapidamente pelo país, provável subnotificação, os governos estavam testando pouco, o governo federal atuava contra as medidas sanitárias, o número de mortos só crescia… Olhei para o lado e minha filha tinha virado a cadeira e olhava para a televisão roendo as unhas.

– Desliga um pouco o PC e vem comer do lado do papai.

– Não! não gosto de jornal – falou voltando-se para o computador.

– Tudo bem…

Não era fácil processar tudo aquilo. Parecia que tudo estava desmoronando lá fora. O número de casos só aumentava e nos hospitais se escolhia quem vivia e quem morria.

– Cadê a mamãe?

– Está trabalhando – engoli seco, engasguei com o café. Tossi, tossi.

– Daqui a pouco ela volta – falei com uma voz rouca, cheia de pigarro.

Ela trabalhava em dois empregos: num hospital de passagem e num asilo para idosos. Ela é assistente social, não estava trabalhando na linha de frente do combate ao vírus, mas tinha que se expor na rua. Qualquer trabalhador da saúde corria sério risco. Perdi a fome. Olhei para minha filha. Ela já tinha esquecido. Estava ali, brincando, alheia a todas as consequências. Vivendo o agora.

Continuei assistindo o telejornal. O programa apresentava uma realidade tão dura que me fez um homem cansado sem ter feito qualquer esforço. Levantei, levei os talheres para a pia. Com a TV ligada, sentei no computador para fazer as atividades diárias. Abre um programa outro, um link, outro, login, senha, escreve, copia e cola, marca a caixa, aperta o botão. Numa dança incessante, frenética, mas completamente estática.

A coluna doía, doía muito. Levantei, me espreguicei. Que horas eram? Voltei para olhar a hora… era hora do almoço, mas havia uma montanha de louça para enfrentar antes. Louça lavada, almoço feito, levei nossos pratos com o almoço para o quarto.

– Toma, seu almoço.

– Não quero alface – falou com uma voz muito baixa, quase inaudível.

– Mas tem que comer tudo! Vamos lá, pra ficar forte e saudável!

– Papai, pra ficar forte contra o vírus?

– É claro!

Começou a comer folhas de alface. Fiquei impressionado como a pandemia marcaria a vida dela, uma criança, submetida ao medo da infecção, sob quarentena, com a mãe que trabalha em hospital e os avós idosos. Era uma consequência óbvia, mas não se para pra pensar sobre isso. Meu coração se encheu de tristeza. O noticiário continuava o mantra diário com número de mortos, hospitalizados, curados, pesquisas sobre o vírus, de onde vem o vírus e a OMS. Desliguei a TV. Novamente não consegui comer.

– Papai, comi tudo! Vou ficar forte contra o vírus – olhou para mim esperando um elogio.

– Parabéns! Muito bem, vou te dar uma deliciosa sobremesa.

– Que sobremesa?? – respondeu, incrédula.

– Vou ver o que tem lá, está bom?

Ela balançou a cabeça em positivo, confiante de que eu resolveria a questão. Enquanto isso, a dor de cabeça explodia em ondas nas laterais do crânio. Respirei fundo, peguei uma garrafa d’água e bebi até a metade. Procurei uma dipirona e tomei com mais a outra metade da metade da garrafa de dois litros de água. Fechei os olhos por um curto período de tempo.

– Papai, você está bem? – ainda estava com os olhos fechados quando ela perguntou.

– Estou bem sim… – respondi percebendo que ela havia vindo atrás de mim na cozinha.

– Não parece… que remédio é esse? – falou olhando para a caixa do medicamento – Você está com o vírus?

– Não filha, só estou com um pouco de dor de cabeça – falei, vacilante – E o que você quer aqui?

– A minha sobremesa.

– Ah, sim! Claro! Vamos ver essa sobremesa. Agora volta lá pro quarto que o papai vai mexer no fogo, está bem?

– Tá bem!

Fiz um brigadeiro com chocolate em pó, leite condensado, uma panela e fogo. Coloquei o doce num prato e levei o prato para o freezer. Peguei a colher de pau que mexe o doce e levei para ela no quarto.

– Toma, vai lambendo a colher enquanto o brigadeiro esfria na geladeira.

– Eba! – virou-se para pegar a colher. Ela desligou o computador e sentou ao meu lado na cabeceira da cama. Eu folheava um livro que estava lendo no momento, num rito de pré-leitura muito particular.

– Papai, por que você lê?

– Porque eu preciso ler, é meu trabalho.

– Só por isso?

– Não, eu também gosto de ler. Gosto das histórias… Você não gosta de histórias?

– Gosto.

– O que mais você gosta?

– De brigadeiro – riu marota, com a boca toda lambuzada de chocolate.

– Que levada!! Peraí que eu vou pegar mais para você!

Deu um grito, levantou e saiu correndo pelo corredor em direção a cozinha. Fui atrás dela andando devagar.

– Será que já está bom? – perguntei retoricamente.

– Sim! Sim!

– Ok, já está frio, mas cuidado com o meio – falei enquanto entregava para ela o prato.

– Posso comer tudo??

– Não né, mas vou deixar você levar o pote todo.

– Eeeeêhhhh! Obrigada papai – virou-se toda faceira com o seu prêmio, um “pote de mel”.

Nesse momento, percebi que tinha descoberto algo que julgava saber. Uma coisa que é tão fácil de entender, mas tão difícil de perceber. A felicidade não constitui um estado no qual atingimos e, finalmente, estamos felizes. Não existe um estado de felicidade. A felicidade está nos pequenos e raros momentos. E, mesmo que a doença tenha colocado a humanidade frente-a-frente com a morte, o fim não é uma novidade. Todos morreremos, sabemos de nosso destino trágico e manifesto.

Talvez, além de ceifar a vida de tantos, o que de pior fez a doença foi embotar nossa visão desses eventos de felicidade que brilham e se apagam em nossas vidas. A felicidade sempre estará ali, nem mesmo todas as mazelas sanitárias, políticas, sociais poderiam tirá-la de lá. E, naquele momento, ela se apresentava para mim, no olhar de uma criança… Meu coração se encheu de esperança e meus olhos de lágrimas, então, a abracei rapidamente para que não percebesse meu choro.

Horas depois recebemos a mamãe e, no momento daquele abraço triplo, apertado, caloroso, sincero, tive a certeza de que éramos as pessoas mais felizes do mundo.


Por Carlos Douglas Martins

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