Pais e Filhos
- Pivete
- 11 de ago. de 2024
- 3 min de leitura

Demorei para perceber que meus pais já tiveram minha idade, já carregaram o mesmo peso das descobertas. Algo tão óbvio, mas que muitas vezes passa despercebido.
Como na música “Pais e Filhos”, da Legião Urbana, eu vivia dizendo que meus pais não me entendiam, mas nunca busquei realmente entendê-los.
Meu pai era um pretinho, como eu, em um mundo tão apático a nós. Acredito que na época dele, as coisas eram ainda piores.
Considerando o que esperavam dele, meu pai até que se saiu bem.
É como uma corrida de revezamento 4x100, no melhor estilo das Olimpíadas. Se ninguém te passa o bastão, como você completará a corrida?
Será que alguém passou o bastão para o meu pai, ou ele correu às cegas, buscando encontrar a linha de chegada?
E se ele conseguir chegar lá, terá valido a pena, atravessar a linha de chegada sem ter recebido o bastão?

Meu pai nem teve pai. Lembro de poucas ocasiões em que pensei ter um avô, mas ele sempre defendia que tinha um, mesmo que distante.
Porém, ele tem mãe, uma das mulheres mais fortes que já vi, que resistiu e criou dois homens negros em meio a tanta falta, violência e injustiça. Dois homens negros, criados por uma mulher solteira, negra, em São João de Meriti, que sobreviveram.
Meu pai nasceu e viveu os caóticos anos 80 e 90 na Baixada Fluminense, sendo um homem negro, sem pai, com uma mãe que passava dias na casa dos patrões, cuidando dos filhos deles, enquanto seus próprios filhos tinham que aprender a se cuidar desde cedo.
Não há culpados nesta história, ela se repete. Meu avô também pode não ter tido pai. Sem querer isentá-lo, ele poderia ter tentado quebrar o ciclo, mas não o fez. Talvez não conseguiu, ou sequer tentou. Só sei que o ciclo continuou.

Esse é um fenômeno que não é exclusividade da minha família, dos meus amigos, do meu bairro. É algo que acompanha uma geração, especialmente pessoas negras.
Minha mãe também compartilha dessa história. Seu pai fingia que não a conhecia, desprezava a ideia de que ela era sua filha. Ela tinha que cuidar dos irmãos e da avó cega enquanto sua mãe trabalhava.
Conseguiu sair do interior, foi para a cidade e trabalhou ainda jovem em casa de família, carregando documentos que a envergonhavam, devido ao risco, que substituía o nome do seu pai.

Lembro que, quando ele faleceu, ela chorou. Nunca conseguirei entender completamente, até porque tenho o privilégio de ter pai e mãe presentes.
Meu pai também chorou quando o pai dele faleceu. Ele não gostou quando me recusei a ir ao enterro, mas ele mesmo também não foi.
Meu avô já tinha outra família, outros filhos, outros netos. A gente era apenas um passado que ele não conseguia apagar, mas também não buscava lidar.
Somos frutos de pais que não sabem lidar bem com seus sentimentos, porque foram todos suprimidos por um sentimento maior: o de sobrevivência.
Filhos de pais que não fizeram terapia.
Filhos de pais que não sabem conversar.
Filhos de pais que não tiveram a quem se espelhar.
Mesmo assim, meu pai, sem nenhum referencial, quebrou o ciclo.

Foi presente em toda a minha formação. Me deu carinho, cuidou das minhas feridas, assumiu minhas broncas e me ensinou a ser homem.
Bateu no peito com a minha mãe e disse “Você tem que estudar, ser melhor que nós, chegar onde nós não chegamos”;
Dois filhos sem pais, querendo criar um filho, para ver o quanto ele vai longe sem a ausência.
A falta é o motor do sucesso ou da derrota.
O que sou até aqui é reflexo do sacrifício dos meus pais.

Meu pai foi uma exceção no meu bairro, no meu estado, no país, quiçá no mundo. Nossas questões de paternidade esbarram em uma construção negativa de nossas identidades, na desigualdade, na violência.
Na falta de referencial, de espelhos, de amor, carinho. Reflexo de um mundo racista, cada vez mais, egoísta.
Resquícios da desumanização do corpo negro, uma ferramenta para o capitalismo, sem direito ao amor e ao cuidado, que não tem direito de expressar os seus sentimentos, que perece antes mesmo de poder sonhar.
Quando percebi que meus pais já tiveram a minha idade, que já sentiram muitas das coisas que senti, reconheci o tamanho do meu privilégio de ter pais que escolheram quebrar um ciclo, que perdurou por anos, e ainda persiste em outras diversos momentos da nossa vida.

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