Era um dia quente, no final de 2023, na Baixada Fluminense, e as ruas de Parque Juriti, em São João de Meriti, pareciam diferentes. Algo novo tomava conta da comunidade, trazendo alegria e curiosidade.
O evento "Quem Sou Eu BXD" não era apenas uma celebração, mas uma ocupação de identidade: um manifesto de jovens negros da favela que transformaram aquele espaço esquecido em um palco de sonhos, arte e resistência.
Desde cedo, a movimentação começou. Moradores se reuniram para montar lonas, organizar brinquedos e ajustar equipamentos de som.
Três grandes lonas de circo foram erguidas. Em uma delas, oficinas de grafite e pintura transformavam os muros da comunidade em obras de arte. Na segunda, artistas locais exibiam seus trabalhos em uma galeria ao ar livre — pique Paris. Já a terceira lona vibrava ao som do hip-hop e do rap, com MCs, batalhas de rima e danças do TikTok.
As crianças corriam de um lado para o outro, explorando cada atividade. Experimentavam grafitar pela primeira vez, desenhando seus sonhos e realidades nos muros.
Algumas brincavam no pula-pula, outras encaravam o touro mecânico, enquanto as mais ousadas exibiam seus passos nas batalhas de TikTok. Na roda de capoeira, crianças, adultos e mestres jogavam juntos, resgatando a força ancestral de uma cultura que nunca se deixa apagar.
Amanda, uma das organizadoras, descreveu o impacto do evento:
"Foi mágico. Você via no olhar delas algo que a gente não vê todo dia: brilho, entusiasmo. Era como se, por um momento, elas esquecessem o peso da periferia e pudessem apenas ser crianças, criar, explorar e sonhar."
Igor Maia, idealizador do projeto, também refletiu sobre aquele dia:
"Foi mais do que um evento cultural. Era sobre dar espaço para essas crianças se verem como protagonistas. Quando uma criança sobe no palco ou pinta um muro, ela não está só brincando; está dizendo: ‘Eu sou importante. Eu tenho voz.’"
Enquanto isso, a comunidade se conectava. Tranças eram feitas, cachorros-quentes distribuídos para a criançada e sorrisos espalhados pela favela. Era um dia de festa, mas também de resistência e pertencimento. Naquele espaço, onde muitas vezes só chegam manchetes de violência, a arte florescia como um ato revolucionário.
Mas o sonho foi brutalmente interrompido...
O dia que deveria ser de celebração terminou em terror. O evento "Quem Sou Eu BXD", planejado para resgatar a identidade e promover a cultura entre crianças e adolescentes da Baixada Fluminense, foi interrompido pela polícia.
Fuzis apontados, brinquedos destruídos, crianças chorando.
Foi mais do que repressão: foi um recado claro de um Estado que não reconhece essas vidas como dignas de respeito ou proteção.
Parque Juriti voltou à lógica de opressão e violência. A máquina de triturar sonhos do Estado não para.
Os dados são claros: crianças negras e periféricas são as maiores vítimas da violência policial no Brasil.
Em 2023, quase 90% das mortes causadas por policiais eram de pessoas negras, segundo o boletim Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão. Para elas, lazer, cultura e educação são frequentemente negados ou interrompidos por um aparato estatal que deveria protegê-las.
O "Quem Sou Eu BXD" era uma tentativa de subverter essa realidade. Transformava ruas em palcos, muros em telas e crianças periféricas em protagonistas.
Igor Maia lembrou do impacto inicial:
"Você via as crianças explorando, grafitando, brincando. Era como se elas, pela primeira vez, sentissem que aquele espaço também era delas. Era sobre pertencimento."
Mas a presença do Estado seguiu o padrão de operações violentas. Viaturas tomaram as ruas, fuzis foram apontados e o brilho nos olhos das crianças deu lugar ao medo.
Igor relatou:
"Levantei a camisa para mostrar que não tinha nada, e eles disseram: ‘Foda-se, eu não quero saber quem você é.’ Foi quando o caos começou."
Amanda descreveu a cena com tristeza:
"Era gente chorando, crianças correndo, brinquedos sendo desmontados às pressas. Foi como se dissessem na nossa cara: ‘Esse lugar não é para vocês.’"
A quadra, que horas antes pulsava com vida, foi esvaziada à força.
Essa cena de violência estatal não é um caso isolado. O racismo estrutural desumaniza e criminaliza populações negras e periféricas, negando-lhes direitos básicos como lazer, cultura e educação.
O "Quem Sou Eu BXD" foi revolucionário. Transformou Parque Juriti, uma comunidade marcada pelo descaso e pela violência, em um espaço onde crianças puderam protagonizar seus próprios sonhos e quebrar, ainda que momentaneamente, o ciclo de dor.
Amanda resumiu:
"Era sobre pertencimento. Sobre elas verem que aquele espaço também é delas."
Mesmo diante do trauma, a comunidade resistiu. Após recolher lonas e brinquedos, os organizadores se reuniram. A revolta virou resistência.
Igor afirmou:
"Eles tiraram nossa alegria naquele dia, mas não vão levar nossa esperança. Se conseguimos fazer isso uma vez, vamos fazer de novo. Mais forte."
O "Quem Sou Eu BXD" foi mais do que um evento. Foi um grito de resistência. Um lembrete de que, na Baixada Fluminense, onde o Estado muitas vezes só aparece com violência, a arte e a coletividade continuam a florescer.
Porque, aqui, resistir é criar.
E criar é existir.
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