Reconhecimento e Redistribuição: Ensaio sobre Raça, Classe e Poder
- Pivete
- 18 de mar.
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As questões de reconhecimento e redistribuição, e as demandas por “reconhecimento da diferença” dão combustível às lutas de grupos mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, raça, gênero e sexualidade.
No entanto, para entender essas perspectivas políticas, usaremos a autora, norte-americana, Nancy Fraser que distingue esse reconhecimento em duas formas: injustiças econômicas e injustiças culturais. Como resposta, propõe dois tipos de remédios: os transformativos e os afirmativos.
Para a autora, as injustiças econômicas e culturais são duas dimensões distintas, mas interligadas, das desigualdades sociais.
Injustiças econômicas dizem respeito à exploração material e à desigualdade na distribuição de recursos. São causadas por processos estruturais que limitam o acesso de certos grupos a bens e oportunidades, como salários dignos, educação de qualidade e segurança econômica.
O capitalismo, segundo Fraser, gera e perpetua esse tipo de injustiça, afetando desproporcionalmente grupos marginalizados.
Injustiças culturais, por outro lado, se referem ao desrespeito, à marginalização simbólica e à desvalorização de certos grupos sociais. Isso inclui desde a negação de identidade e voz política até a imposição de estereótipos que reforçam hierarquias sociais.

Ela propõe dois tipos de soluções para essas injustiças:
Remédios afirmativos, que buscam corrigir desigualdades sem alterar a estrutura social subjacente, como ações afirmativas que aumentam a diversidade sem mudar a lógica do mercado.
Remédios transformativos, que visam mudanças estruturais para eliminar as causas das desigualdades, como políticas que combinem redistribuição econômica e reconhecimento cultural de forma radical.
Ouço muitos discursos que, em grande parte, se restringem à política de reconhecimento, combatendo injustiças culturais com remédios afirmativos.
Pautas como apropriação cultural e colorismo são encaradas como prioridade, muitas vezes ignorando questões econômicas e se limitando à esfera cultural.
Enquanto isso, temas como o genocídio da população negra e pobre e as oportunidades desiguais entre negros e brancos são colocados em segundo plano.
A identidade se tornou a prioridade, e, em contrapartida, o mercado se apropriou de nossas lutas.
Asad Haider, em Armadilha da Identidade, crítica como a identidade, ao se tornar um fim em si mesma, perde sua potência revolucionária.

Para ele, a luta contra o racismo não pode ser desvinculada da luta contra o capitalismo, pois é a estrutura econômica que perpetua a exploração racializada.
No Brasil, onde a pobreza tem cor, não se pode negar a questão econômica.
Um jovem negro de classe média na zona sul não enfrenta o mesmo racismo que um negro periférico. Embora compartilhem a mesma discriminação cultural, a desigualdade econômica define experiências e oportunidades. O racismo brasileiro é formado por questões econômicas, sociais e culturais, e tratá-lo apenas pelo viés cultural é enxugar gelo.

Um autor que aborda essa distinção é Jessé Souza, especialmente em obras como A Elite do Atraso e A Ralé Brasileira. Ele argumenta que o racismo no Brasil está profundamente ligado às desigualdades econômicas e que a classe social influencia diretamente a forma como o racismo é vivido.

Para Souza, a discriminação racial afeta todos os negros, mas um negro de classe média tem proteções sociais que um negro periférico não tem, pois a questão econômica modula suas experiências e oportunidades.
Ele critica a visão que trata o racismo apenas como um problema cultural, sem considerar sua relação estrutural com a desigualdade econômica.

A ideia de descolonização do saber é necessária, mas, quando se rejeita um conhecimento apenas por sua origem eurocêntrica, sem uma análise crítica e honesta, adota-se uma postura dogmática.
Já vi colegas rejeitarem Marx apenas por ser um pensador branco e europeu, ignorando que sua teoria da luta de classes fornece ferramentas essenciais para compreender a exploração racializada.
Ao mesmo tempo, esses mesmos colegas, paradoxalmente, absorvem de forma acrítica as ideias do movimento negro americano, sem considerar as diferenças históricas e estruturais entre Brasil e EUA.
Não podemos importar mecanicamente uma luta contra a segregação racial americana para um país onde o racismo opera por outros mecanismos.

O mercado percebeu essa confusão e se aproveitou dela. Basta ligar a TV para ver o investimento pesado em “marketing que respeita a diversidade”.
A representação é importante, mas até que ponto transforma a vida do povo preto? Se o desrespeito às diferenças é o motor dos conflitos sociais, será que uma representatividade superficial não desmobiliza e esvazia nossas lutas?

Haider alerta que, ao nos contentarmos com uma política de reconhecimento desvinculada da redistribuição, nos tornamos cúmplices de um sistema que apenas nos inclui enquanto consumidores, mas não enquanto sujeitos políticos capazes de transformar a realidade.
Remédios afirmativos para injustiças culturais apenas criam formas de valorizar identidades dentro da estrutura existente, sem questioná-la.
Como Fraser aponta,
“esse tipo de multiculturalismo propõe compensar o desrespeito por meio da revalorização das identidades grupais injustamente desvalorizadas, enquanto deixa intactos os conteúdos dessas identidades e as diferenciações grupais subjacentes a elas”.
Em contraposição, os remédios transformativos, segundo Fraser,
“...compensariam o desrespeito por meio da transformação da estrutura cultural-valorativa subjacente". “Desestabilizando as identidades e diferenciações grupais existentes, esses remédios não apenas elevariam a autoestima dos membros de grupos marginalizados, mas também transformariam o sentido de identidade de todos”.

É preciso ver as pautas negras como uma política de redistribuição e reconhecimento com um viés transformativo. Não basta se sentir representado dentro de um sistema que nos oprime – é necessário desconstruir essa estrutura racista.
Não queremos apenas ser incluídos no mercado como consumidores ou representações simbólicas; nosso objetivo é reconfigurar as relações de poder de maneira estrutural.
O caminho não está em aceitar cotas na publicidade ou celebrar a presença de mais atores negros nas novelas da Rede Globo como se fossem conquistas definitivas.

Precisamos ir além da representatividade superficial e exigir políticas públicas universais que enfrentem as raízes da desigualdade.
Isso significa lutar por uma educação pública de qualidade, acesso a oportunidades reais e a construção de uma sociedade que não apenas nos reconheça, mas nos permita existir com dignidade e autonomia.
Como Haider sugere, só ao rejeitarmos a armadilha da identidade e articularmos uma luta antirracista com um projeto anticapitalista poderemos construir uma transformação real.
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