Trabalha e Confia
- Pivete
- 16 de fev.
- 6 min de leitura

Que mapa estão os meus pés?
Meus pés caminham entre Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. No mapa, Espírito Santo, pequeno em território, grande em beleza. Meus pés, que seguem descobrindo essa terra abençoada, entre mares e montanhas.
Em outras andanças, agora em quatro rodas, ouvi de seus moradores, que carregam pessoas por aí, sobre um estado lindo, mas também cheio de contradições.
E eu, que sou do Rio, sei bem que as belezas também podem mascarar feiuras: contradições, desigualdade, marcas inevitáveis de um sistema que não se sustenta sem elas.

Aviso também que uso a música "Que Mapa?" de Arthur Verocai, composta junto de Vitor Martins, presente no incrível álbum "Arthur Verocai" (1972), seu debut e um dos maiores da música brasileira.
Na época, tão revolucionário que flopou, mas foi redescoberto pela cultura hip-hop, pelos gringos, outro suposto "descobrimento" — como tantos outros que veremos por aqui.
O primeiro deles: o "descobrimento" de uma terra repleta de gente.
O Espírito Santo foi um dos primeiros estados colonizados pelos portugueses, numa história marcada por conflitos com os povos originários que já estavam aqui.
Meus pés, que pisaram nesses lugares de disputa sem ao menos saber, me guiaram por encontros e desencontros com vestígios de uma história antiga, mas ainda presente.

É só olhar ao redor. Entre pesquisas, descubro cada vez mais.
Esse texto é sobre isso: voltar ao passado para entender melhor o presente e, quem sabe, vislumbrar um pouco do nosso futuro.
Começo lá longe, às vezes venho para perto, depois me afasto. Não quero seguir uma ordem. Quero que viajemos, mas também retornemos, sabendo que o passado diz muito sobre o presente.
E que, ao entender um pouco mais sobre como chegamos até aqui, podemos tentar guiar nossos passos para um futuro melhor.

A praça, o povo, a fé.
No século XVI, os jesuítas liderados por São José de Anchieta tentaram catequizar os indígenas, especialmente os Tupiniquim e os Temiminó.
Houve resistência, e essa catequização, como sabemos, veio acompanhada de violência, escravização e deslocamento forçado desses povos.

Até hoje, a luta dos indígenas no Espírito Santo continua. Tupiniquim e Guarani travam há décadas uma disputa pela demarcação de terras.
Uma das maiores polêmicas envolveu a Aracruz Celulose (atual Suzano), que ocupava territórios tradicionais indígenas para o cultivo de eucalipto.

No site do Arquivo Nacional, no espaço Memórias Reveladas, encontrei uma notícia da Agência Pública que revela que a Aracruz Celulose teria se associado a governos locais e órgãos públicos na repressão a povos tradicionais e na compra de terras indígenas e quilombolas durante a ditadura militar.
Documentos e relatos apontam exploração, repressão de trabalhadores e prisões arbitrárias.

Além disso, a empresa teria usado mão de obra indígena e quilombola na capina e preparação da terra para o eucalipto, submetendo essas pessoas à exploração e violação de direitos trabalhistas.
Sobre o lema da bandeira, azul, branca e rosa, nossos irmãos indígenas e quilombolas só puderam trabalhar, mas nunca confiar.

"Trabalha e confia" vem de uma frase de São José de Anchieta: "Trabalha como se tudo dependesse de ti e confia como se tudo dependesse de Deus".
Uma filosofia de vida baseada no esforço e na fé.

Mas esforço nem sempre é recompensado. Trabalho, mesmo com confiança, nem sempre gera resultado.
O Espírito Santo tem um PIB per capita elevado, mas grande parte da riqueza está concentrada em poucos setores e regiões.
Cidades como Vitória e Vila Velha têm um alto padrão de vida, enquanto municípios como São Mateus e Baixo Guandu enfrentam dificuldades econômicas.

Mas nem tudo é tragédia.
Em 2015, a Grande Vitória tinha 500 mil pessoas vivendo com menos de um salário mínimo.
Hoje, Vitória é a sexta capital melhor posicionada no ranking de desigualdade no Brasil, segundo o Instituto Cidades Sustentáveis (2024).

A gente, o porto, o cais.
Fernando Domingos, em sua dissertação de mestrado em Geografia na UFES, escancara a desigualdade no acesso ao lazer em Vitória.
Seu estudo mostra como a cidade é rachada ao meio pelo Maciço Central, criando um abismo entre a orla Nordeste, cheia de grana e estrutura, e a orla Noroeste, onde a quebrada resiste no abandono e precariedade.
Saindo de casa para a escola onde leciono, vejo isso todos os dias.
Como um Uber me disse nessas andanças, a cidade é dividida ao meio: a parte rica e a parte pobre.
Isso fica explícito quando coloco meus pés na rua.

A favela nunca para.
O estudo de Fernando Domingos também mostra como o povo se vira: ocupando, resistindo, reinventando espaços públicos na marra, fortalecendo o lazer e a convivência coletiva, mesmo sem apoio do governo
No fim, a pesquisa revela que, quando o assunto é lazer, a cidade ainda é feita para poucos.

O medo, a vida, o revés.
Os bairros Nova Palestina e Resistência nasceram da luta de um povo preto, pobre e periférico por um lugar para chamar de seu.
Ocupações forjadas na necessidade, enfrentando desde o começo o descaso do Estado e a criminalização da pobreza.

Nova Palestina surgiu nos anos 1980 e 1990, com famílias ocupando áreas alagadas próximas ao manguezal.
O nome já carrega um simbolismo forte: referência à luta palestina, ecoando a resistência de um povo que precisa disputar cada pedaço de terra para existir.
As dificuldades eram imensas: remoções, repressão, abandono.
No começo, não havia ruas asfaltadas, saneamento, infraestrutura.
Luz no "gato", água improvisada, lazer à base da criatividade.
Mas trabalharam, confiaram e construíram o bairro com as próprias mãos.

Nos anos 2000, com muita mobilização popular, vieram algumas melhorias, mas sempre a passos lentos.
Vitória tem o maior manguezal da América Latina: a reserva do Lameirão, com 900 hectares.

Esses manguezais são berçários de vida marinha e sustentam inúmeras famílias de pescadores.
Mas a cidade, rachada por desigualdades, trata esses territórios como problemas, não como riquezas.
E nada vai bem ou vai mal.
O Espírito Santo foi diretamente afetado pelo desastre de Mariana (2015).
Até hoje, pescadores e ribeirinhos enfrentam dificuldades para recuperar seus modos de vida.

O Polo Industrial de Tubarão, em Vitória, é um dos maiores do Brasil, mas também um dos principais poluidores do estado.
O minério de ferro transformou a Praia de Camburi em um mar tóxico.

Situação que permanece, mesmo com as autoridades dizendo o contrário.

Mas o povo segue questionando, lutando e buscando melhorias.
Essa cidade linda me encantou.
Nesse texto, não busco somente expor contradições, mas mostrar que a história é construção. Vitória já conquistou meu coração.

De lá para cá, muita coisa mudou. Espírito Santo virou um lugar onde me imagino morando até os fins dos meus dias.
Vitória dá de dez a zero no Rio, São Paulo e Minas Gerais em segurança, saúde e educação.
Uma terra de belezas únicas, de gente forte, de culinária incrível.

Sabia que a moqueca daqui não leva dendê? Ou que feijão tropeiro e banana frita estão em quase todo canto, até no hambúrguer?
Eu amo morar aqui.
Também tem Vila Velha, com o Convento da Penha abençoando todo o estado lá do alto.

Ou o Restaurante Agathe’s, funcionando desde 1992, um lugar onde me vi parte desse povo, canela verde.
Ou, do outro lado da ponte, onde estão os capixabas.
São três pontes que ligam e dividem essas cidades, o mar ao redor, mas também os manguezais que as cortam, suas “sinaleiras”, sua mistura: baianos, mineiros e cariocas.

Seu amor pelo meu Flamengo, o samba do Bar da Zilda, seu carnaval e suas escolas de samba, que se confundem com a história do povo, da cidade, do estado, do nosso país.
Rua Sete, Jardim da Penha, Bento Ferreira, Santo Antônio, Cariacica, Jardim Camburi e tantos outros lugares que fazem esse estado ser santo — em espírito, em povo, em gente.
E que deixam explícitas suas contradições, porque é necessário. Faz parte de toda essa beleza falar muito do povo e do poder.

Trabalhadores que confiam em seu estado, que trabalham pelo seu crescimento individual e coletivo.
O melhor café do mundo está aqui.
A moqueca que não leva dendê.
A maior frota de pescadores do Brasil.
Terra que encantou imperadores, que até governaram aqui por algumas horas e morreram de amores pelo Convento da Penha.

Quem nunca foi, precisa se planejar para ir.
Eu amo morar nessa ilha, uma das três capitais-ilha do Brasil.
E por isso escrevo sobre ela sem romantizar, sem esconder suas chagas.

É necessário amar com sinceridade, sem se alienar.
O amor tem que ser real, sem idealizações. I

Isso é o verdadeiro ato de amar.
Vitória, decidi te amar.
Este é o mapa sob os meus pés.
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